Portugal entre a utopia e o desespero no Porto/Post/Doc

No Dia Internacional dos Direitos Humanos, o festival exibe dois retratos do país real em que vivemos: Dreamocracy e Acima das Nossas Possibilidades.

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Acima das Nossas Possibilidades, média de Pedro Neves DR
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Dreamocracy, longa-metragem de Raquel Freire e Valérie Mitteaux DR

Dizíamos há poucos dias, olhando para a “selecção nacional” no concurso do Porto/Post/Doc, que o documentário português parecia estar “fechado” sobre si mesmo. Falámos cedo demais: aí está o novo festival portuense a provar o contrário com dois filmes portugueses mostrados fora de concurso no Dia Internacional dos Direitos Humanos.

De certo modo, Dreamocracy, longa-metragem de Raquel Freire e Valérie Mitteaux (grande auditório do Rivoli, quarta 10 às 21h), e Acima das Nossas Possibilidades, média de Pedro Neves (Passos Manuel, quarta 10 às 22h30), são filmes complementares. Duas faces de uma mesma medalha que confrontam o espectador com o país em que vivemos, hoje, agora, de modo urgente e directo. Nenhum deles é perfeito, mas os seus temas exigem que se transcenda a simples questão formal: são documentos “a quente”, para memória futura, de um Portugal em austeridade, cujo impacto social é assumido e procurado pelos seus autores.

Dreamocracy é co-assinado pela cineasta e escritora Raquel Freire, uma das figuras que tem dado a cara pelos movimentos de activistas nascidos a partir da manifestação do 11 de Março de 2011, enquanto Acima das Nossas Possibilidades foi realizado no âmbito do Projecto Troika, colectivo de fotógrafos que durante o último ano acompanhou os efeitos da austeridade. Para Freire e para a documentarista francesa Valérie Mitteaux, trata-se de acompanhar ao longo de largos meses a tentativa dos activistas João Labrincha e Pedro Santos, dois dos impulsionadores da Geração à Rasca, de porem de pé o conceito da Academia Cidadã, definida como uma escola de activismo democrático. Pedro Neves vira a câmara para o outro lado, para as “vítimas” da austeridade imposta pela troika, gente que nunca viveu “acima das suas possibilidades” mas que, lançada para uma miséria interminável pelas restrições e cancelamentos de subsídios, deixou sequer de ter possibilidades.

Os filmes não se anulam mutuamente, antes se complementam. Freire e Mitteaux filmam Labrincha e Santos como idealistas em prol de um futuro melhor, cientes das armadilhas para que o seu discurso os pode arrastar, conscientes que os frutos do seu trabalho apenas serão visíveis a longo prazo. Neves regista o desespero daqueles que não vêem nem têm futuro e que buscam apenas sobreviver, hoje, com um mínimo de dignidade que a sociedade não parece disposta a dar-lhes.

A vantagem, há que dizer, vai para Acima das Nossas Possibilidades: os seus 45 minutos são literalmente esmagadores no modo como tornam real, tangível, a miséria, com uma secura profundamente desconfortável que se esquiva à vitimização para filmar esta gente “à altura do olhar”. Pela sua própria natureza de registo de um processo de construção e educação, Dreamocracy é menos imediato; a sua estrutura mais formatada de documentário/reportagem “pequeno écrã” (trata-se de uma co-produção da televisão francesa) torna-o mais interessante como um objecto consciente do seu idealismo mas disposto a investir nele contra ventos e marés.

Mas, em ambos os casos, a sua importância documental compensa as suas fragilidades. E nenhum deles se esgota na sua passagem pelo Porto/Post/Doc: estreado na noite de terça 9 no Fórum Lisboa, Dreamocracy vai ser exibido um pouco por todo o país em regime de sessões especiais, enquanto Acima das Nossas Possibilidades está incluido em DVD na “edição de autor” do Projecto Troika.

Fantasmagoria macaense
Há um terceiro filme português mostrado em estreia no Porto/Post/Doc – mas Iec Long (grande auditório do Rivoli, quinta 11 às 23h30) insere-se em coordenadas completamente diferentes. Esta curta-metragem de 30 minutos é mais um dos esboços fluidos, “pós-documentais”, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata sobre a Macau de ontem e de hoje, usando como ponto de partida uma hoje desactivada fábrica de panchões (um foguete pirotécnico tipicamente chinês) e as memórias de um dos seus trabalhadores.

Rodrigues e Guerra da Mata deixam as ruínas da fábrica Iec Long serem assombradas pelos rostos e pelos corpos dos miúdos que lá trabalharam (o tamanho das suas mãos tornava-os ideais para encherem os cartuchos de pólvora), invocadas pelas palavras em off, e prosseguem assim a exploração fantasmagórica das fronteiras entre real e ficção que já dera origem ao díptico formado por Alvorada Vermelha e A Última Vez que Vi Macau. J. M.

 

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