RTP: liquidação em directo

Pretender proibir a RTP de estar no mercado da Liga dos Campeões – o que interessaria às TV privadas... – seria condenar o serviço público de televisão à marginalização.

Public Service Broadcasting can only play its role as a binding force in society if it manages to keep its mass appeal ‘not for all people all the time, but for all people some of the time’. For that reason, too small a vision of its remit and program task represents a serious threat. Not only news, information and debate, but also drama and entertainment are creative genres that appeal large audiences and are able to tie the audience together”[1]

1. A RTP e a Liga dos Campeões

Tem sido alvo de polémica o facto de a RTP, enquanto serviço público de televisão (SPT), “concorrer” com as TV privadas na aquisição dos direitos da Liga dos Campeões para 2015. Trata-se de críticas desajustadas. A verdade é que, noutros países da Europa e do mundo, os SPT adquiriram os direitos da Liga dos Campeões no passado e provavelmente continuarão a fazê-lo. Na União Europeia (UE), em 2014, foi o caso de países tão distintos como a Alemanha, a Finlândia, a Grécia, a Irlanda, a Croácia, Malta, a Holanda, a Polónia, a Roménia, a Eslováquia, e a Espanha. Fora da UE, podem citar-se os casos da Suíça e da Austrália. Não é pois só a RTP que considera, e bem, que as grandes audiências que estes eventos atraem não são, nem poderiam ser, um “mercado” exclusivo das TV privadas e uma tipologia de programas vedada aos SPT, uma vez que têm qualidade e constituem âncoras de captação de grandes públicos diversificados. Aliás, o próprio novo contrato de concessão que o Governo se prepara para assinar com a RTP prevê essa possibilidade. Pretender proibir a RTP de estar nesse mercado – o que interessaria às TV privadas... – seria condenar o SPT à marginalização.

A atual discussão, aliás, só mostra que, desde 2002, quando o Governo de então quis acabar com o canal 2 da RTP, e depois recuou, não se aprendeu nada sobre o SPT em Portugal: nem o que é, nem para que serve, nem quais são os seus fatores críticos de sucesso. Nem mesmo o entendeu o Conselho de Administração (CA) da RTP, o qual, apesar de contratar agora a Liga dos Campeões, não conseguirá com isso compensar o mal que já foi feito à RTP, com as sucessivas reestruturações, a saída massiva de quadros qualificados, e um desinvestimento suicida na informação, na programação e na produção própria, que transformaram a RTP num dos SPT com menor audiência da UE.

Os eventos desportivos de grande audiência não podem ser o foco da programação de um SPT, mas não se pode pedir a uma televisão pública em perda, talvez irreversível, de audiências, como é a RTP, que renuncie a programar produtos com enorme capacidade de atração de espetadores. Precisamente porque um dos fatores críticos de sucesso – o primeiro, aliás – de um SPT de tipo europeu é ter um nível de audiência significativo.

2. O modelo de SPT europeu

No âmbito do Tratado de Amesterdão, em 1997, os países da UE concordaram num protocolo que prevê que o SPT “está diretamente ligado às necessidades de natureza democrática, social e cultural de cada sociedade, bem como à necessidade de preservar o pluralismo nos meios de comunicação social”. Em Portugal, infelizmente, esta discussão volta sempre à estaca zero, como se o mercado, ou algum tipo de regulação, assegurassem a satisfação daquelas necessidades. Não é assim. Por razões de “falhas de mercado”: a TV de sinal aberto é um bem público com utentes-espetadores, clientes-anunciantes e “soberania indireta” do espetador; existem externalidades negativas e positivas; verifica-se o princípio da diferenciação mínima, afetando a programação dos diferentes operadores. Mas também por razões de fragilidade da autoregulação por parte dos operadores e de falta de cultura de regulação, ou mesmo omissão de intervenção, por parte da ERC. Basta lembrar que, na SIC e na TVI, em sinal aberto, os comentadores políticos residentes nos jornais de maior audiência são ambos ex-presidentes do PSD, pelo que se a RTP não tivesse assegurado (continuará?) um comentário político ao menos bipartidário nesses espaços, o pluralismo estaria não só ameaçado, como já está hoje, mas seria efetivamente inexistente. 
 
Já em 1999 a McKinsey havia concluído, num estudo para a BBC, que há uma relação marcada entre a existência do SPT e a qualidade da programação no mercado televisivo como um todo, desde que o SPT tenha audiência suficiente para ter influência. Apesar de a regulação ter um papel indispensável na elevação do nível do panorama televisivo, a existência do SPT é um modelo melhor, já que combina pressão criativa e pressão de mercado junto dos operadores privados. O SPT tem que proporcionar uma gama alargada de programação, tendo legitimidade para procurar atingir amplas audiências, e não ser (apenas) complementar. Se o fosse, limitaria o seu impacto social e não poderia ser referência, perdendo razão de ser. As audiências não são um fim em si, antes são requisito para manter uma influência universal, essencial à missão do SPT. Depois, o difícil está em concorrer com elevação e ética, mesmo na programação popular, liderar pela qualidade, mesmo contendo custos, e ser referência, mesmo arriscando (mas combatendo) a conotação de “chato”. Dificuldade que, é certo, a RTP não ultrapassou.

3. Um serviço público em perda acelerada

Hoje, a audiência, e portanto a influência, da RTP é um problema dramático. Interessa pouco a triste disputa pública sobre quem decide, o Conselho Geral Independente ou o CA da RTP. O que é relevante é a efetiva destruição de valor no SPT português. Entre 2008 e 2012, a RTP perdeu mais de um terço da sua audiência, passando de 29,4% para 18,8% de share médio. Nesse período, nos 28 países da UE, a média do share de audiências dos SPT passou de 30,7% para 27,1% (dados do EAO-European Audiovisual Observatory, 2013). Se em 2008 a RTP estava alinhada com a média europeia, em 2012 estava já bem abaixo da média. E, em 2013, a RTP voltou a perder audiências, tendo o seu share descido para 17%. Nesta queda acelerada – a quarta maior queda da UE neste período, e a segunda maior nos SPT que partiam de uma audiência de mais de 20% –, a RTP arrisca tornar-se num SPT irrelevante no panorama audiovisual português, perdendo objetivamente a sua razão de ser. Acresce que a receita anual da RTP correspondeu em 2012 a 0,16% do PIB, quando a média da UE foi de 0,25%, com a Alemanha a atingir 0,32% e a Dinamarca 0,36% do PIB (cálculos do autor; dados do EAO e do Eurostat), países onde o SPT tem audiências bem acima dos 40%. Parece evidente que a redução do financiamento da RTP – a quinta maior redução da UE entre 2008 e 2012, nos SPT que partiam de uma audiência acima dos 20% – está já a refletir-se na capacidade de assegurar audiências compatíveis com um SPT de modelo europeu.

4. Conclusão

Sem público, não há SPT. Para a RTP é crítico recuperar audiências. Estrangular a RTP, com cortes cegos e decisões inconsequentes, e depois alegar que morreu de morte natural, não disfarçará um paulatino processo de liquidação. Está a acontecer, em direto.

[1] D’Haenens, L. and Bardoel, J. (2007), “European Public Service Broadcasting: a Concept, an Institution, and a Practice”, em D’Haenens, L. and Saeys,F. (eds.) (2007), Western Broadcast models: structure, conduct and performance, Berlin, Mouton de Gruyter, pp.79-94

Economista

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