Brasil no divã: “O brasileiro tem com a sua própria terra e com a sua própria vida uma relação de saque”

Dias antes da primeira volta das eleições, pedimos a três escritores brasileiros que colocassem o Brasil no divã. Neste domingo de eleição, a conversa é com o psicanalista italiano Contardo Calligaris que, depois de viver em Paris e Nova Iorque, adoptou São Paulo como casa.

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Contardo Calligaris DR

Com um humor sempre na ponta da língua, o discípulo e amigo de Jacques Lacan e Roland Barthes, Contardo Calligaris viu, este ano, o personagem dos seus livros de ficção, o psicanalista Carlo Antonini ir para o écran da televisão na série Psi da HBO. Sentado ao lado do divã de seu consultório faz o primeiro diagnóstico: “A primeira grande neurose do Brasil é derivada da colonização. O Brasil não foi colonizado, foi saqueado.”

Que episódio desta campanha eleitoral escolheria e descreveria, numa analogia com a psicanálise, como um sintoma que demonstra o conflito?
É a publicação do programa da Marina e logo depois a correcção no que concerne especificamente à união estável e o casamento gay. Você se lembra que o programa original parecia indicar que a Marina seria favorável ao casamento gay e parece que não era bem isso o que ela queria dizer. Ela fez uma besteira do ponto de vista político; a besteira é publicar uma coisa que você não quer, mas a besteira maior ainda é voltar atrás, uma besteira do ponto de vista eleitoral. Este episódio chamou a atenção para uma realidade que todo mundo sabia: a relação de Marina com as religiões evangélicas, que não significa necessariamente uma dependência política. É interessante notar e surpreendente que no Brasil de hoje afinal existe uma classe média laica que provavelmente tem um peso na opinião pública maior do que ela mesmo suspeita. Em grande parte a queda da Marina nas pesquisas foi devido a isto. Eu conheço um monte de pessoas que são absolutamente anti-PT, embora tenham votado no Lula no passado, que iam votar nela e, de repente, isso tornou-se um problema: entregar o país a alguém que tem um aparato de conselheiros de boa qualidade mas que não tem um partido realmente dela e que ela mesma é uma pessoa evangélica. Aí entraram uma série de pequenas histórias, de que ela abria uma passagem da Bíblia ao acaso…

Isso não é um preconceito?
Para mim não é um preconceito. É um conceito. Não gosto de alguém, não que seja evangélico, mas que tenha a menor chance em qualquer campo que seja, de ser um fundamentalista, de tomar decisões políticas sobre a vida dos outros a partir da sua fé religiosa. Esta pessoa é o meu inimigo (risos). Não tem nenhum candidato que seja um representante desta classe média laica. Nem a Dilma nem o Aécio porque tanto um como outro são capazes de aparecer em qualquer função religiosa e fazer uma cara de bonzinho. Aécio nestas situações é mais consciente da sua própria hipocrisia. Ninguém nos trata como gente grande neste país. Só tem discurso para criança. Somos todos sendo tratados como crianças.

E na hora do voto, as decisões são infantis?
Isso eu não sei. E não é só no caso brasileiro mas em geral. Há factores completamente infantis. A candidatura da Marina entrou em crise porque no Brasil as pessoas gostam de votar em quem ganha. Não é só no Brasil. As pessoas gostam de votar em quem ganha porque assim você acaba a eleição e diz “ Ganhei”. Não é só no Brasil. O Brasil tem um eleitorado em grande parte pobre, digo no sentido propriamente financeiro, que vota a partir de interesses imediatos. Esta também não é uma realidade única nem especial. Acho que vai levar três, quatro, cinco gerações para haver uma cultura política neste país. Não há partidos políticos. Nem o PT se pode dizer que seja um partido político. Talvez o PSOL ou os partidos de extrema-esquerda.

Por que o PT não é um partido político?
Porque não tem base. Só tem alguns militantes profissionais que cuidam de uma organização cuja principal vocação é se manter viva e no poder, que catalisa dinheiro e financiamento para poder se eternizar no poder. Isso não é a realidade do que era o Partido Socialista português ou o Partido Comunista Português ou o Partido Comunista Italiano que são partidos - o último pelo menos, que eu conheci muito de perto. Eram partidos que tinham uma visão do futuro e que tinham uma base, tinham células. Você ia para uma célula do partido comunista do seu bairro, tinham pessoas que eram pais de família, mães de família, estudantes, caramba, que discutiam sobre o que seria o nosso futuro, como a gente chegaria lá. O PT não tem absolutamente nada disto. Os pequenos partidos de esquerda ainda têm este nível de entusiasmo, debate, discussão, do futuro possível, mas são totalmente inexpressivos.

Costuma dizer que aprendeu com Lacan que não existe normalidade. Todo mundo tem uma neurose. Quais são as grandes neuroses do Brasil?
(Risos) Cheguei ao Brasil na segunda metade dos anos de 1980. O Brasil era profundamente exótico. Eu sou europeu e norte-americano, morava em Paris há quase 20 anos e sou italiano de origem, embora seja de língua materna inglesa. O Brasil era exótico do ponto de vista cultural. Um país com um conflito muito bizarro entre uma espécie de ufanismo ridículo do tipo cantando ‘eu sou brasileiro ÔÔÔ’, a presença de um sentimento de um destino comum era praticamente nula; era um país profundamente corrupto, muito mais do que agora. Extremamente fechado com um provincianismo cultural tremendo, era um país isolado do resto do mundo. Na época até escrevi um livro chamado Hello Brasil, notas de um psicanalista europeu chegando ao Brasil. Era um livro de impressões e por causa dele acabei sendo convidado para ir para Nova Iorque. Por exemplo o facto de que roubo no Brasil é a maneira normal de furtar, quer dizer, roubar é normal, furtar é bizarro. Ninguém espera que você abandone o seu carro para roubá-lo, é muito mais prático enfiar um revólver na sua cara e pedir a chave porque um dos prazeres é a violência física e pessoal de enfiar um revólver na sua cara.

Isso continua?
Continua, o que mudou completamente é que eu não acho mais estranho, eu me acostumei. Não me surpreendo mais. Em Paris, duas vezes meu apartamento foi invadido enquanto eu estava fora de férias. Tanto faz, o seguro pagou. Mas no Brasil não é assim. O cara toca a campainha, entra com um revólver, tranca você no banheiro, ameaça a sua mulher, os seus filhos porque esta violência física e pessoal é culturalmente mais interessante do que a ideia de entrar quando não tem ninguém roubar e ir embora. Isto eu estranhava e estava na posição de poder estranhar. Não mudou. Eu mudei. Hoje não seria capaz de escrever aquele livro porque não sou capaz do mesmo tipo de olhar, do cara que acaba de descer do avião.

Mas e as neuroses, quais são?
As grandes neuroses do Brasil são as mais antigas, são filhas da sua História. O Brasil é um país que foi colonizado de uma maneira tremendamente selvagem, eu lamento dizer isso para os portugueses, mas a primeira grande neurose do Brasil é derivada da forma de colonização do Brasil. O Brasil não foi colonizado, foi saqueado. A colonização espanhola do outro lado do Tratado de Tordesilhas, por exemplo, estabeleceu capitais no interior do país; o Brasil só teve capitais na costa: Salvador e companhia. São capitais para saquear, se apoderar e depois se mandar. Que o Brasil se chame Brasil é divertido, porque é o nome de um produto de exploração que não existe mais que é o Pau-Brasil. O Brasil não existe mais. Não tem mais Brasil no Brasil. Foi levado embora. Na América espanhola fundaram uma universidade muito mais cedo. No Brasil era proibido, a resistência a permitir que se constituísse uma classe intelectual foi enorme. O brasileiro tem uma relação com a sua própria terra e com sua própria vida, uma relação de saque que vem desta História. Um dos resultados desta herança do sistema de colonização é a incapacidade de pensar uma dimensão de coisa pública. Claro que a gente fala das coisas mais óbvias como jogar o papel no meio da rua. É a ponta do iceberg. Um dos aspectos da absoluta feiura do Brasil é o emaranhado de fios eléctricos e de cabos nas ruas que é uma coisa monstruosa para um europeu ou para um americano. As pessoas nem se dão conta mas é um substrato estético da violência no espaço público. É muito mais difícil assaltar numa esquina bonita do que numa esquina deteriorada. Aliás, não é uma invenção minha, a teoria das janelas quebradas é uma teoria estabelecida em matéria de segurança pública.

E há outras neuroses?
Os brasileiros têm uma visão de si mesmos completamente alterada e encorajada grandemente por algumas campanhas políticas, por exemplo, eles têm uma visão de si mesmo como um povo extremamente sensual e sexual. Os brasileiros são horrorosamente caretas, com uma capacidade de fantasia sexual muito modesta, muito modesta.

Mas a visão que se tem de fora é oposta.
De que seria um povo liberado? Não, não, muito careta, com fantasias sexuais extremamente limitadas. Uma sexualidade muito limitada. Uma parte do ufanismo nacional diz que somos liberados e corporalmente soltos e com uma sexualidade fantástica e tropical, sei lá. Para se soltar ainda é muito melhor passar uma temporada em Paris do que no Rio de Janeiro (risos).

Na psicanálise, a cura é a transformação. Por que transformação o Brasil precisa passar?
Ah, o Brasil está se transformando. Sou especialmente sensível ao ritmo de mudança no Brasil. O país onde eu cheguei e me instalei, graças a Deus, é muito diferente do país de hoje, radicalmente diferente do ponto de vista do conforto de vida. Os livros na segunda metade da década de 80 eram uma coisa horrorosa, fisicamente intolerável ler aquilo, pareciam todos livros pagos por um poeta pobre e desconhecido do meio do mato que decidiu imprimir os seus poemas. Realmente mudou. O Brasil era um país onde se comia horrorosamente mal. Hoje dá para ter uma experiência gastronómica. O gosto melhorou, o brasileiro descobriu que a gastronomia é um dos prazeres da vida e que não é só para sobreviver e engordar. São transformações importantes porque são do lado do hedonismo. Hoje você pode se sentar sem camiseta (camisola) numa cama de hotel. O brasileiro se tornou capaz de reconhecer que o número de fios num algodão egípcio pode ser significativo na sua vida.

Mas estamos a falar de uma elite…
Claro que tem a ver com uma elite, mas, quando cheguei, a elite tinha dinheiro mas achava que um frango frito num hotel-fazenda, com um lençol que quando você acordava de manhã estava arranhado, era muito legal para o fim-de-semana. Não é mais assim. Presume-se que isso chegue a outras camadas, aos poucos, que descubram o que significa, o que é o prazer. Não é muito diferente da história do sexo. Um pouco a mesma coisa que descobrir que o sexo seja uma coisa um pouquinho mais interessante do que “eu f… ontem à noite” (risos). Algo mudou também do ponto de vista político. Acredito que que algo esteja mudando. Se isso vai aparecer já nestas eleições, não sei, vamos ver…

E o que é preciso para o Brasil sair do conflito?
Eu não quero que saia do conflito. O conflito psíquico é o que define a vida. Não quero que saia do conflito, quero que seja um conflito mais interessante, complexo e diversificado.

Vamos falar da contra transferência no seu caso. O que de si mesmo está em tudo o que você analisou?
(Risos) Em outras palavras a pergunta seria: ‘o que é que estou fazendo aqui?’ A qualidade das amizades pessoais que eu fiz no Brasil foi extraordinária, o Brasil foi o lugar onde eu fiz mais amigos e amizade para mim é muito importante. Amigo é aquele para quem você liga, quando você está em Kuala Lumpur e é assaltado, lhe roubam o passaporte, cartão de crédito, todo o dinheiro, os documentos, fica pelado de cuecas e tem um telefonema para dar. Isso é amigo. Você está absolutamente convencido e tranquilo de que esta pessoa vai fazer o que for preciso, vai vender o carro, para te ajudar.
 

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