Na vida dos brasileiros, como na campanha, os ânimos estão exaltados

O confronto político eleitoral extravasou para os restantes domínios da vida quotidiana e tem levado a brigas de familiares, amigos e vizinhos. A agressividade das candidaturas não ajuda a acalmar os ânimos.

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O ruído e a agressividade da campanha extravasaram para o quotidiano dos brasileiros Ricardo Moraes/Reuters

O famoso humorista (e actor) do portal cómico brasileiro Porta dos Fundos, Gregório Duvivier, foi atacado numa esplanada do Rio de Janeiro depois de ter declarado o seu voto na Presidente Dilma Rousseff, na crónica semanal que escreve para o caderno dedicado às eleições no jornal Folha de São Paulo.

O texto, publicado na semana passada, referia a alegada pressão para o voto no candidato do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves, que tomou conta do local. “A militância de jipe e os comentaristas de portal não me dão outra opção. Se quem defende causas humanitárias e direitos civis é tachado de petista [apoiante do Partido dos Trabalhadores] só me resta aceitar essa pecha”, concluía, na contramão.

O episódio com Duvivier foi relatado pelo jornalista Ancelmo Góis, que assistiu à cena, passada num restaurante do Leblon, um bairro rico da cidade. Incomodado com a presença do escritor e comediante, um outro cliente gritou que “ia acabar metendo a porrada nele”, e aconselhou o representante da “esquerda caviar” a levantar-se e ir “almoçar no bandejão, já que gosta tanto de pobre”.

O caso não foi um acto espúrio e nem sequer invulgar por estes dias no Brasil, onde várias personalidades públicas – e muitos mas muito mais cidadãos anónimos – têm sido alvo de insultos, injúrias, ameaças e agressões por causa das suas posições políticas de apoio a um ou outro candidato presidencial.

O ambiente de acentuada tensão e polarização da campanha eleitoral extravasou do campo partidário para os restantes domínios da vida quotidiana do país. Colegas de escola ou companheiros de trabalho, familiares próximos ou distantes e mesmo totais desconhecidos têm-se envolvido em épicas batalhas verbais e por vezes partido mesmo para a violência.

O blogueiro Leonardo Sakamoto, que defende um ponto de vista de esquerda mas não é afiliado em nenhum partido político nem declarou a sua intenção de voto, já estava acostumado a ser “xingado, caluniado e ameaçado” pelas ideias que defende e escreve no UOL, o maior portal do Brasil (uma das ameaças que retém foi quando alguém sugeriu que aquele que “moesse meia hora de pau nele” ganharia um prémio). Ao PÚBLICO, o jornalista e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo nota, porém, que a frequência e o tom dos ataques pirou muito desde o início da campanha eleitoral. “Quando vou na rua sou insultado, as pessoas passam em carros grandes e gritam, dizem que vão me bater, me torturar, para eu ficar esperto, já me cuspiram”, conta. “O ambiente está muito pior, as coisas estão pesadas. O pessoal está fora de si”, considera.

As ofensas, violência, intolerância e preconceito multiplicam-se no dia a dia da campanha e atingem as diversas faixas etárias e todas as classes sociais. A anonimidade das redes sociais – e a facilidade que oferecem para a distribuição de conteúdos – promove a desinformação e contribui para o recrudescimento do fenómeno. Através do Facebook, do Twitter e do Whatsapp disseminam-se as mensagens mais agressivas e os vídeos mais preconceituosos (que nunca passariam pelo crivo das autoridades eleitorais se fossem divulgadas por um partido político).

Simplificações
Como explica Sakamoto, o confronto presidencial é uma espécie de pináculo da crescente polarização em que vive a sociedade brasileira – que tem tendência a ser apresentada de forma simplista em termos de uma luta de opostos: ricos versus pobres, nordestinos versus paulistanos… Contudo, Sakamoto discorda dessa categorização: “Eu vivo num grande centro urbano, sou da classe média alta, oriental, com educação superior e não voto à direita, sou de esquerda”, aponta, para concluir que na realidade a distinção é mais complexa do que “rico à direita e pobre à esquerda”.

Mas o que não falta nesta campanha são simplificações. Para os apoiantes de Aécio Neves, os petistas são ladrões ou bandidos, vagabundos, ignorantes, corruptos ou mentirosos. Pelo seu lado, os votantes do PT acreditam que o social-democrata tem horror a pobres e se eleito tudo fará para recuperar um sistema de relações sociais praticamente feudal, retirando direitos às classes ascendentes para que os mais ricos possam manter a sua ilusão de privilégios.

Num país onde a tradição de debate de ideias e diálogo político ainda é relativamente recente, e onde as votações presidenciais tendem a pôr em confronto os mesmos dois partidos – PT e PSDB – leva a que as pessoas se entrincheirem em posições cada vez mais inflexíveis e radicais.

As candidaturas presidenciais não ajudam. Com a imprensa e a sociedade a reclamar contra a violência da campanha, não se ouviu de nenhum dos dois concorrentes uma palavra de repúdio ou condenação pelo exagero retórico ou acusações infundadas e gratuitas. Uma sondagem da Datafolha desta quarta-feira mostra que 71% dos brasileiros consideram que o actual grau de agressividade vai muito para além do que é normal numa disputa política, contra 27% que acham normal. De acordo com a pesquisa, 63% dos eleitores dizem que os próprios candidatos têm sido muito agressivos (36% consideram A[ecio Neves o mais agressivo, 24% dizem que é Dilma Rousseff e 32% responsabilizam igualmente os dois).

A jornalista da Folha de São Paulo Patrícia Campos Mello, que escreve sobre política externa, não costuma encontrar críticas partidárias na caixa de comentários da sua página de Facebook: foi uma novidade desta campanha eleitoral. A sua receita foi apagar as mensagens que considerava “desenquadradas” – muitos dos utilizadores do Facebook começam a escrever um asterisco nas suas mensagens, anunciando aos amigos a possibilidade de remoção de comentários políticos. E se alguns simplesmente eliminam os perfis dos amigos com quem discordam; muitos entram em discussões intermináveis para criticar ou tentar fazer os outros mudar de ideias em relação ao voto. “Estou com uma fadiga das pessoas brigando e desse clima, está me dando uma exaustão. Qualquer coisa vira política. E tudo vira briga”, desabafa Patrícia. Mas também há quem já comece a manifestar alguma nostalgia pelo anunciado fim do debate eleitoral: várias mensagens já aparecem precedidas pela cifra #síndroma de abstinência.

O fosso político cada vez maior faz com que amizades sejam suspensas em período de campanha eleitoral – e desta vez, ninguém sabe dizer se serão   retomadas após a votação. O resultado – qualquer que seja – exigirá um “tempo” para a digestão de ódios e ressentimentos que germinaram nas últimas semanas.

O risco é que, ganhe quem ganhar, o nível de divisão da população torne o país ingovernável. “Quem quer que seja eleito no dia 26 vai ter de adoptar um comportamento de reconciliação muito forte. O Brasil está muito mal acostumado mas vai ter de aprender a conviver: não pode tripudiar nem perseguir, se não vai juntar muito rancor e dor”, reflecte Leonardo Sakamoto.

O escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto não acredita muito nessa  possibilidade. “No actual momento, ninguém vai ceder espaço. Eu estou pessimista, dentro do conformismo. As coisas são o que têm de ser. Na sua história, o Brasil nunca passou por uma situação em que a nacionalidade estivesse reduzida à sua condição mais básica, em que as pessoas partem todas do mesmo ponto para fixar um contrato social novo”, diz ao PÚBLICO.

Esses são momentos que habitualmente resultam de grandes traumas, como guerras ou calamidades, em que a comoção nacional é compartilhada por todos. “Isso é uma coisa que eu penso quando viajo pela Alemanha, pelo Japão, por sociedades mais igualitárias porque um grande evento obrigou as pessoas a conversar”, explica. “No Brasil, o único quadro de comoção, com todo o mundo chorando junto e se sentindo junto como uma nação, em pé de igualdade, foi quando morreu o Ayrton Senna”, compara.  Depois disso, lamenta Vidal Porto, “não aconteceu mais”.

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