As sobras de junho

Ao mesmo tempo em que se pedia a tarifa zero para os transportes e saúde e educação “padrão Fifa”, bradava-se contra a corrupção e chegava-se a propor o fim do direito de voto aos beneficiários do Bolsa Família.

As manifestações que ganharam as ruas do Brasil em junho do ano passado levaram muitos analistas a apontar ali um ponto de virada na política nacional, que fatalmente levaria a engrossar os protestos durante a Copa do Mundo e se refletiria nas eleições deste ano.

Puro wishful thinking, como identificavam já na época os que recusaram a seguir a onda e duvidavam que mobilizações tão heterogêneas e contraditórias pudessem resultar em algo coerente. Menos ainda que representassem uma tendência à esquerda de contestação ao sistema: pois, se fossem majoritariamente essas as forças que encheram tão exuberantemente as ruas naquela época, nem seria preciso esperar as eleições para perceber alguma mudança nos rumos do país.

Pelo contrário, uma multidão claramente conservadora ganhou espaço, o que embaralhou ainda mais o cenário e dificultou uma avaliação mais consistente sobre os possíveis desdobramentos daqueles protestos. Assim, ao mesmo tempo em que se pedia a tarifa zero para os transportes e saúde e educação “padrão Fifa”, bradava-se contra a corrupção e chegava-se a propor o fim do direito de voto aos beneficiários do Bolsa Família, o programa assistencialista do governo que provê uma renda mínima a quem vive na extrema pobreza.

Recordemos, além disso, que os protestos começaram a arrefecer com a proeminência da atuação violenta dos black blocs, levando a que as manifestações se reduzissem a um embate entre policiais e pequenos grupos de militantes, com o roteiro previsível de uma coreografia pirotécnica. Foi a isso que se restringiram as mobilizações durante a Copa do Mundo, aliás duramente reprimidas pela polícia.

Além do mais, o tom dos protestos à esquerda era claramente niilista: rejeitava partidos, rejeitava a política institucionalizada, contestava o sistema de representação da “democracia burguesa”. Alguns analistas, à época, faziam um paralelo com os movimentos de ocupação das praças públicas que proliferaram por grandes cidades pelo mundo e previam algo parecido com o que ocorreu na Espanha, quando os Indignados gritavam “nossos sonhos não cabem nas urnas”: a grande abstenção nas eleições de 2011 acabou favorecendo a centro-direita.

No Brasil não está sendo muito diferente, mas certamente menos pela influência desse balão de gás que inflou e aparentemente murchou sem grandes consequências. O primeiro turno das eleições, com os resultados já definidos para as Câmaras de Deputados e para o Senado, apontou uma tendência ainda mais conservadora, com recordes de votação em candidatos da chamada “bancada da bala” – os que defendem propostas como a pena de morte e a redução da maioridade penal – e nos evangélicos mais retrógrados, homofóbicos empedernidos e contrários à descriminalização do aborto.

No Rio de Janeiro, o segundo turno será decidido entre o atual governador e o candidato da Igreja Universal. Para o jornalista Cid Benjamin, será a disputa entre a Chicago dos anos 30 e o retorno à Idade Média.

A isso se junta um forte sentimento anti-PT, em parte consequência de casos e denúncias de corrupção – e não se trata aqui de assinalar que a corrupção está arraigada na nossa cultura política, ou que a imprensa dá mais destaque ao tema, e mesmo exagera e deturpa, quando o envolvido é o PT, porque não se trata de acolher o comentário do então presidente Lula de que o partido “apenas fez o que todos sempre fizeram”: afinal, quem votou nele há 12 anos apostou em mudança.

Uma parte do sentimento anti-PT decorre desses desiludidos. A outra, seguramente mais significativa, corresponde aos que sempre torceram o nariz às políticas de inclusão social. Depois do primeiro turno, circulou nas mídias sociais um mapa que mostrava a coincidência quase absoluta entre as regiões que deram a vitória ao governo e as que concentram mais de 25% de beneficiários do Bolsa Família. O discurso de ódio aos nordestinos voltou a transbordar. Em entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso forneceu mais munição a quem cultiva o preconceito contra os subalternos, ao declarar que “o PT está fincado nos menos informados, que coincide de serem os mais pobres”.

Outro tipo de animosidade remonta ao mais rasteiro e anacrônico anticomunismo, como exemplifica Gregorio Duvivier em seu mais recente artigo na Folha de S.Paulo: “Estou voltando para casa a pé, tarde da noite, quando percebo que uma enorme SUV me acompanha – lustrosa, reluzente, cheirando a blindada. Finjo que não percebo, até que começam a buzinar. Minha autoestima elevada me faz crer que são fãs do Porta dos Fundos [o grupo humorístico ao qual o ator pertence, e que faz enorme sucesso na internet]. Aceno simpático. Um sujeito põe a cabeça para fora da janela e berra: ‘Vaza, PT! Volta pra Cuba!’”

É nesse clima que se desenrola a fase decisiva da eleição presidencial. Difícil dizer para onde vamos, mas é certo que vivemos um momento envenenado, que a própria campanha do primeiro turno explicitou, ao privilegiar os ataques pessoais – eufemisticamente chamados de “desconstrução do adversário” pelos gênios do marketing – à discussão de propostas. O que, na observação de alguns analistas, foi decisivo para produzir a apatia e o desinteresse entre os eleitores.

A contraditória massa que saiu às ruas em junho do ano passado pedia mudança. Palavra ambígua, que embute um sentido progressista, mas pode significar o seu oposto. Não por acaso, recorrente nos discursos eleitorais: desta vez, até mesmo no da candidata da situação.

Janio de Freitas, na véspera do primeiro turno, fez em sua coluna na Folha de S.Paulo um diagnóstico preciso da progressiva corrosão da nossa democracia, ancorada em representações partidárias reduzidas a “meros agrupamentos que se associam e dissociam apenas por conluios eleitorais em cada localidade”, e que por isso “deixam de ser o meio pelo qual a sociedade manifesta, e tenta consumar, as suas aspirações. Quem representaria determinada causa está coligado a quem a rejeita”.

Mudança, a rigor, só com a reforma política. Realizá-la é que são elas: por motivos óbvios, os beneficiários desse sistema não terão interesse em promovê-la. E os movimentos sociais, até o momento, não demonstraram força suficiente para exigir o que, entretanto, é urgente.

Professora de jornalismo na Universidade Federal Fluminense e colaboradora do Observatório da Imprensa

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