Responda rapidamente: o que lhe dizem as suas calças, a primeira arma impressa em 3D ou as pestanas de Katy Perry?

O Victoria & Albert Museum faz perguntas com a inauguração de uma nova galeria e de um novo modus operandi: pensar rapidamente e coleccionar ainda mais depressa, introduzindo objectos de hoje no discurso das instituições culturais sobre a história social, do design, da arquitectura e da tecnologia. Nesta história do Rapid Response Collecting até há um lobo mau.

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Lufsig, Ikea, 2013 Victoria and Albert Museum
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Arma Liberator, 2013, Cody Wilson Victoria and Albert Museum
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O sapato Fifi em cinco tons, por Christian Louboutin, 2013 Victoria and Albert Museum
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Espigões, de 2014 Victoria and Albert Museum
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Terminal usável Motorola WT41N0, 2012 Victoria and Albert Museum
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Calças da New Wave Bottoms para a Primark Victoria and Albert Museum
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Jogo Flappy Bird Victoria and Albert Museum
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Cigarros electrónicos Vype, 2013 Victoria and Albert Museum
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UltraRope da Kone, 2013 Victoria and Albert Museum
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Pestanas Cool Kitty da Eylure, 2013 Victoria and Albert Museum

As suas calças da Primark são mais do que uma peça de roupa impossivelmente barata – são um exemplar de museu do que é hoje a moda rápida, do design aos seus custos humanos. O peluche dos seus filhos de um lobo mau IKEA vque come mesmo a avozinha é mais do que um brinquedo bem desenhado – é um testemunho, já com lugar num dos museus mais importantes do mundo, dos protestos de Dezembro em Hong Kong. O tempo entre a produção e a penetração de um objecto no mundo e sua validação pelas instituições culturais está a mudar. Rapid Response Collecting é o Victoria & Albert (V&A) com o dedo rápido no gatilho, a coleccionar o objecto que ainda ontem foi comprado numa loja, feito graças a uma inovação tecnológica de ponta ou usado como símbolo num protesto.

A galeria abriu na sexta-feira no importante museu londrino e está recheada de objectos reconhecíveis – como qualquer museu de design, é certo, mas neste caso são mesmo muito próximos no (nosso) tempo e, em muitos casos, de produção massificada. As pestanas postiças publicitadas por Katy Perry, os cigarros electrónicos ou um novo cabo capaz de alterar a autonomia dos elevadores e de transformar o aspecto dos arranha-céus são três dos 12 objectos que contam o primeiro capítulo da história do Rapid Response Collecting.

Outros virão, numa rotação regular na qual entrará na exposição um objecto para outro sair. A ideia é “compreender a história social através de objectos de arte, design e arquitectura” contemporâneos, como descreve Kieran Long, curador-chefe de Arquitectura Contemporânea, Design e Arte Digital do V&A. E a rapidez está não só na capacidade de trazer em muito pouco tempo – podem ser três a cinco dias – um objecto para a colecção do museu mas também de o expor quase imediatamente. O mundo está a mudar velozmente e um museu de 150 anos decidiu pôr-se no seu encalço.

Para já, na pequena galeria de cinco expositores as tais calças Primark são vizinhas da primeira arma feita numa impressora 3D e dos espigões instalados num bairro de Londres para impedir dormidas de sem-abrigo. Estas são, respectivamente, as duas primeiras peças da colecção de resposta rápida do V&A e a mais recente. No início de 2013, o museu repensou a sua estratégia para os temas de design e criou uma nova equipa de curadores que, além das suas áreas de especialidade na arquitectura, design, digital e urbanismo, trabalha para fazer Rapid Response Collecting – ou seja, “coleccionar o mundo contemporâneo”, como explica ao PÚBLICO Corinna Gardner, curadora de design de produto contemporâneo e de Rapid Response Collecting.

A reflexão sobre “como é que as coisas desenhadas podem articular a mudança global ou que são moldadas por coisas que acontecem no mundo”, como descreve a curadora do V&A, passou à prática quando, em Abril de 2013, a fábrica de Rana Plaza, no Bangladesh, colapsou. Ali se fabricavam peças para algumas das marcas de moda rápida europeia mais conhecidas e ali morreram mais de mil pessoas. “Foi uma das coisas que nos ajudaram a cristalizar o nosso pensamento”, conta Corinna Gardner sobre uma ida posterior à loja Primark, uma das marcas que lá fabricavam peças, para comprar um par de calças. Com o objecto na mão, “sentimo-nos capazes de concentrar uma discussão sobre fabrico global, códigos de construção, consumo”, enumera, no âmbito da colecção nacional de têxtil e moda do museu.

Depois, veio a pistola. Em 2013, Cody Wilson, estudante de Direito e libertário norte-americano, pôs na Internet a receita para fazer uma pistola numa impressora 3D – uma das mais revolucionárias inovações dos últimos anos para o campo do design – e, depois de os planos terem sido descarregados por mais de cem mil pessoas, foi obrigado pelas autoridades norte-americanas a retirá-la da Internet. O caso da primeira pistola impressa em 3D, chamada Liberator, foi incluído num debate sobre design e violência pelo Musem of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, e foi amplamente discutido na opinião pública tanto na óptica das patentes quanto da violência, armamento e cultura open source

E no final estavam os espigões, adquiridos na semana passada e expostos imediatamente para a abertura oficial da mostra, na sexta-feira, depois de muitos londrinos se terem manifestado contra esta forma de controlo urbanístico. Os dois primeiros objectos deram forma à ideia do Rapid Response Collecting, o último mostra a rapidez com que esta colecção pode ser construída e exposta, e todos são notícias. Obrigam a equipa a uma atenção constante – Corinna repete ao longo do telefonema com o PÚBLICO: “Não consigo retirar-me do mundo em que vivo” – e constrói aos poucos novos aspectos do que é ser curador.

No V&A, esta equipa é diferente. Há mais de cem curadores distribuídos pelos cinco grandes departamentos do museu e Corinna Gardner admite que a premissa do Rapid Response Collecting “vai, de certa forma, contra abordagens mais tradicionais ou convencionais de curadoria em que se pode esperar pela passagem do tempo antes de trazer um objecto para a colecção, porque dá uma maior confiança de que o objecto vale a pena guardar”. E também porque se no V&A há peritos especializadíssimos – um deles em contraplacado, por exemplo –, a equipa do coleccionismo de resposta rápida quer aliar a isso “um leque de especialização” para “um contexto mais alargado e comunicá-lo para fora. E isso é uma ligeira mudança no que entendemos como prática curatorial”.

Nesta operação que se vai continuar a construir ao longo dos dias, meses e anos, tudo é focado no objecto e não, como no cânone dos museus de design, na sua autoria ou inserção num movimento. Falamos do jogo para telemóveis Flappy Bird, um dos 12 primeiros escolhidos para a galeria, e não do seu autor – apesar de a retirada do jogo das lojas online pelo próprio criador, um vietnamita que já não conseguia lidar com os níveis de frustração e de atenção dos utilizadores ao viciante passatempo, ter sido o que chamou a atenção do museu britânico. Ou das leituras que pode suscitar um terminal de computador usável.

É um dos objectos da colecção rápida que Corinna Gardner destaca. Este microcomputador da Motorola – oferecido ao museu pela marca, tal como as calças Primark ou os Louboutin – usa-se no pulso e no dedo e o trabalhador aponta para o objecto que vai transportar, ele é registado, e depois é registada a sua colocação noutro local. A partir daí, o computador dá ao funcionário a tarefa seguinte no supermercado ou no armazém da loja online de livros. “É extremamente eficiente e sofisticado”, mas se pode ser usado para fiscalizar a produtividade e dar origem a bónus, também pode servir de base a despedimentos ou a controlos de pausas, idas à casa de banho e outras privacidades. E é “esta hipereficiência que possibilita coisas de que gostamos, como entregas no dia seguinte”, recorda a curadora, exemplificando assim os temas que gosta de ver ser debatidos a partir de um objecto numa vitrine no V&A. “É o futuro do trabalho, mas a forma como esta tecnologia é usada está aberta a discussão.”

E serão as pestanas a que Katy Perry empresta a cara e o carisma de estrela pop relevantes daqui a 50 anos, nesse futuro? Os riscos da construção de uma colecção baseada no imediatismo no âmbito de um acervo tão vetusto quanto o do V&A são grandes. Corinna Gardner não os ignora: “Estamos interessados no aqui e no agora. O museu é um lugar a que as pessoas de hoje vêm para saber mais sobre hoje. Há um risco sobre se esse objecto continuará interessante para os investigadores do futuro, mas penso que não devemos abster-nos de adquirir objectos que achemos que são importantes imediatamente. Escolhemos trabalhar o contemporâneo e por isso temos de ser ágeis e rápidos, e isso em parte explica porque é que criámos uma forma de coleccionar que reflecte essas ambições intelectuais”, defende. 

O manto das notícias, e subsequente debate que cai sobre os temas que estes objectos corporizam, é inegavelmente político – e pode também contribuir para esse risco, mas a curadora não está muito preocupada. Há positivos inegáveis, como o cabo Kone UltraRope, que aumenta as possibilidades para a engenharia de elevadores, e há peças rodeadas de críticas à sociedade de consumo em que ecoam notícias e debates. O crítico de design e arquitectura do Guardian assinala exactamente que a abordagem da exposição é “um pouco demasiado jornalística, como andar por uma lista de artigos mais lidos em forma de objectos”, mas se Gardner reconhece que, “naturalmente, há uma sensação ligeiramente jornalística, a forma como olhamos, expomos e falamos destes objectos é muito diferente”, acredita.

A abordagem, possibilitada para já por algumas doações mas também pelo orçamento geral de cada departamento e pelos “valores modestos” dos objectos da colecção (as calças rondam os 15 euros, o peluche do IKEA custa 9,99 euros), pode fazer escola. O director do norte-americano Cooper Hewitt – Smithsonian Design Museum considera este novo modus operandi do V&A “uma manobra arrojada”, como disse ao New York Times, em Dezembro. Quando o Cooper Hewitt reabrir as portas depois de três anos em obras, terá o seu próprio espaço para iniciativas de “resposta rápida”.

O lobo de Hong Kong

A colecção permanente do V&A tem 4,5 milhões de objectos e a eles juntaram-se assim nos últimos meses e semanas mais 12 na primeira galeria do museu que pode reagir quase imediatamente a acontecimentos, avanços tecnológicos, mudanças políticas ou fenómenos de cultura pop com impacto nas artes, no design e na arquitectura. Cultura material do século XXI como o lobo Lufsig, um brinquedo engenhoso por cuja boca entra a avozinha e por cuja barriga sai, com a ajuda do velcro, a dita idosa sobrevivente da história do Capuchinho Vermelho, mas que também é símbolo político. Lufsig foi usado no final do ano passado nos protestos contra CY Leung, presidente da região administrativa especial de Hong Kong, pelo facto de o responsável ter como alcunha “Lobo”, mas também pelo facto de o nome do brinquedo soar a um palavrão em cantonês – o fenómeno levou ao esgotar do stock do produto.

O design surge em contexto, mas num muito particular que tanto é o do grande consumo quanto o das grandes questões sobre valores como a paz e o armamento – esta última questão fez com que o V&A tivesse de imprimir a sua própria pistola quando a arma que viajava para Londres para a mostra ficou retida na alfândega por ser um tipo demasiado novo de armamento para ter uma classificação.

Se a história do lobo de Hong Kong é eminentemente política, já a dos elegantes sapatos de Christian Louboutin, cujo nome é sinónimo de calçado de culto e de luxo, é económica, de raça e de género. O tom nude é tendência mundo fora. Mas o que é “cor de pele” num mundo de várias etnias? O mestre francês resolveu a questão com sapatos em cinco tons de pele nua, da negra à caucasiana, criando uma paleta que faz pensar.  

Foi um dos objectos que os quatro curadores discutiram e validaram para integração na estratégia de Rapid Response Collecting e é o segundo destacado por Corinna Gardner no actual espólio. “Estes sapatos são bastante caros e agora há mulheres de diferentes etnias pelo mundo que têm um rendimento pessoal que lhes permite comprá-los, o que nos diz algo sobre os mercados de moda de luxo em mudança, nomeadamente para a Ásia”, entusiasma-se a curadora de design de produto contemporâneo.

A estratégia Rapid Response Collecting quer acrescentar uma camada pintada de fresco ao que os museus de design já fazem – estimular-nos a repensar as nossas relações com objectos quotidianos. Num punhado de salas em Londres, “a nossa equipa é um departamento da vida pública. O que é que o design nos diz sobre a forma como vivemos juntos hoje ou sobre a forma como talvez vivamos juntos amanhã?”  

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