A nova regulamentação dos ensaios clínicos e os desafios da globalização

O desenvolvimento da investigação científica na Europa enfrenta actualmente enormes desafios.

Verificou-se entre 2007 e 2013 uma redução de 32% do número de ensaios clínicos de medicamentos realizados na Europa, apesar de se tratar de uma actividade fundamental para permitir o rápido acesso a medicamentos inovadores. Simultaneamente, assistiu-se à deslocalização das actividades de investigação clínica para países de mercados emergentes como a China, a Índia e a Rússia.

O enquadramento regulatório dos ensaios clínicos na União Europeia (UE) não é certamente alheio a este movimento de globalização. Fortes críticas têm sido feitas pelos diversos stakeholders ao regime jurídico aplicável aos ensaios clínicos que resulta da directiva n.º 2001/20/CE de 4 de Abril, e ao défice de harmonização entre as legislações dos diversos Estados-membros nesta matéria.

É com o objectivo de fazer face ao claro declínio das actividades de investigação clínica na Europa que foi aprovado, no passado dia 14 de Abril, o novo regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a ensaios clínicos de medicamentos para uso humano. Sendo este novo regime aprovado por regulamento, significa que foi dado um passo no sentido da uniformização das legislações nacionais, pois o regulamento é directamente aplicável em todos os Estados-membros, afastando inclusivamente a aplicação da legislação nacional que lhe seja contrária.

Em paralelo, no dia 16 de Abril, foi publicada em Diário da República a lei n.º 21/2014, que é a nova lei da investigação clínica. Este diploma tem um âmbito mais alargado do que o regulamento acima mencionado, já que tem por objecto outros estudos clínicos, para além dos ensaios com medicamentos para uso humano. No entanto, há uma clara sobreposição entre os dois diplomas no que diz respeito à matéria dos ensaios clínicos.

Considerando que, em nome do primado do Direito da União sobre o Direito interno dos diversos Estados-membros, numa situação deste tipo, a aplicação das normas do Direito interno que são contrárias ao disposto no regulamento deve ser afastada, questiona-se o sentido de oportunidade do legislador nacional (tema este que me levaria a escrever um outro artigo…).   

Os objectivos visados pela aprovação do novo regulamento são claros e ambiciosos: estimular o desenvolvimento das actividades de investigação clínica na Europa, através da implementação de medidas que contribuam para criar um ambiente mais favorável à realização de ensaios clínicos. No entanto, este objectivo não pode ser atingido a qualquer custo, mantendo-se as exigências de rigor na protecção dos participantes em ensaios clínicos e de fiabilidade e robustez dos resultados produzidos pelos ensaios, os quais são determinantes para a aprovação da introdução no mercado de um novo medicamento.

É, sem dúvida, dado um impulso importante na agilização dos processos de autorização de ensaios clínicos, sobretudo no que diz respeito aos ensaios que se realizam em mais do que um Estado-membro, em que é introduzido um mecanismo de coordenação entre os diversos Estados-membros no processo de autorização. É também de realçar a maior transparência que passa a ser conferida a todo o processo, quer na fase de autorização, quer mais tarde na divulgação dos resultados dos ensaios clínicos, através da publicidade de uma base de dados de ensaios da UE acessível ao público através do portal da UE.

Não obstante a bondade das medidas implementadas, resta saber se serão eficazes para fazer face à situação desafiante que actualmente se verifica quanto ao desenvolvimento das actividades de I&D na Europa. É sabido que os mercados, ditos emergentes, que actualmente se mostram mais atractivos para o investimento em investigação clínica, não se pautam pelo respeito dos mais rigorosos padrões de ética biomédica internacionalmente aceites. Tendo a Europa como objectivo claro reconquistar uma vantagem competitiva perdida nesta área, também é consensual que o enfraquecimento da protecção dos participantes em ensaios clínicos não é tolerável à luz dos nossos valores civilizacionais.

Este é, sem dúvida, um nó górdio difícil de desatar.

Sócia da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira

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