Quem não sabe governar, legisla

Na edição de 11 de Abril do PÚBLICO, o secretário de Estado do Ordenamento do Território e Conservação da Natureza, Miguel de Castro Almeida, escreveu um artigo sob o título “Uma nova forma de planear” cujo estilo e conteúdo merecem comentário e questionamento.

A prosa do secretário de Estado é um panegírico às iniciativas governamentais sobre a “nova proposta de lei de bases” (ordenamento do território) e a publicação do Decreto-lei n.º 53/2014, de 8 de Abril (Reabilitação Urbana) e a demonstração clara de que, em Portugal, quem não sabe governar, legisla. Criando uma permanente instabilidade do quadro legal e a consequente “perda de investimentos pela morosidade dos processos de licenciamento”.

Existe, hoje, na sociedade portuguesa um alargado consenso sobre a necessidade de redireccionar as políticas urbanas e imobiliárias para a cidade existente, apostando na sua reabilitação física e regeneração funcional. O elevado excedente de alojamentos vagos (cerca de 780.000, Censo de 2011); infra-estruturas e equipamentos subutilizados; a profunda crise do modelo de urbanismo expansivo e desordenado, baseado em construção nova e em financiamento abundante; e os novos imperativos de eficiência energética e da descarbonização da economia fazem da reabilitação e regeneração o novo paradigma e prioridade das políticas urbanas.

O tema da regeneração e reabilitação urbanas (RU) emergiu, com ressonância, nas agendas mediáticas dos parceiros sociais e dos agentes políticos, após a eclosão da crise imobiliária e financeira, em 2008. O Governo então em funções respondeu com prontidão, aprovando um inovador e consistente Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (DL n.º 307/2009) que dotou os municípios de instrumentos operativos de promoção da RU; consagrando um amplo conjunto de isenções e benefícios fiscais; criando condições para a “intervenção dos proprietários e outros parceiros privados”; e agilizando os procedimentos de licenciamento.

O mesmo Governo criou veículos financeiros para a RU: os fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e as sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH), ambos dotados com regimes fiscais muito favoráveis (Lei n.º 64-A/2008). E organizou o Programa JESSICA, conjugando fundos estruturais, dotação do Tesouro e recursos bancários, com excepcionais condições – juros, prazos e períodos de carência – para a reabilitação urbana.

Que aconteceu, entretanto, com a reabilitação urbana, nos cerca de três anos de vigência do actual Governo? Muitas promessas eleitorais e alterações de legislação. Na prática? Nada! O investimento em reabilitação urbana baixou significativamente nos últimos anos. O programa JESSICA tinha apenas 36 projectos aprovados, representando cerca de 200 milhões de euros de investimento, menos de 50% do programado. Entretanto, caducou o regime dos incentivos fiscais dos FIIAH e das SIIAH, tornando-os ineficazes. Nos instrumentos da programação financeira e operacional 2014-2020, recentemente entregues pelo Governo à Comissão Europeia, não constam nem medidas nem dotações específicas para a RU.

Enunciando as virtudes do DL n.º 53/2014, o secretário de Estado afirma: “A reabilitação urbana passará, finalmente, a ser o core business do sector”. Ora, sobre este diploma há que dizer: 1) a dispensa, nos prédios a reabilitar, do cumprimento de normas relativas a áreas mínimas, alturas de pé-direito, etc. tem plena justificação, mas é redundante, pois esta isenção já estava prescrita no DL n.º 307/2009 (alínea h), art.º 4.º), e com uma formulação mais abrangente; 2) a dispensa de requisitos acústicos, de eficiência energética e da qualidade térmica, decisão que o SEOTCN omite (significativamente?) é muito questionável; 3) e o secretário de Estado ilude a verdade quando afirma “reforça-se a salvaguarda da estrutura, garantindo-se a segurança de pessoas e bens”, pois o DL n.º 53/2014 prescreve, no art.º 9.º, que “as intervenções em edifícios existentes não podem diminuir as condições de segurança e de salubridade da edificação, nem a segurança estrutural e sísmica do edifício”. Sabendo-se que muitos dos edifícios antigos não dispõem de requisitos de segurança sísmica, que adianta não reduzir o que já não têm? Os perigos desta imprudência, particularmente nas zonas de Lisboa e do Algarve, são evidentes, como, aliás, já sublinharam publicamente diversos especialistas da matéria.

Finalmente, senhor secretário de Estado: disponibilize os estudos em que o Governo se baseia para afirmar que, com esta alteração legislativa, “reabilitar uma casa poderá custar menos de 30% a 40% do que custava até aos dias de hoje”. Porque, se tal não for devidamente demonstrado, é legítimo pensar que se trata de mera propaganda demagógica, de recorte eleitoralista.

Urbanista. Presidente da CCDR-LVT entre 1998 e 2009

 

 

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