O que é que uma prisão em Stanford tem a ver com a praxe em Portugal?

Também fui praxado: "obrigaram-me" a tirar a t-shirt. Escreveram todo o tipo de mensagens embaraçosas no meu corpo a verniz

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Renata F. Oliveira/Flickr

Em 1971, Philip Zimbardo transformou uma sala da universidade de Stanford numa prisão. A experiência consistia em 24 sujeitos serem aleatoriamente designados como prisioneiros ou guardas. Os guardas tinham símbolos de poder como farda, chapéu, cacetete ou óculos de sol. Os prisioneiros eram desumanizados. Perdiam a sua identidade e passavam a ser apenas um número. Depois, eram obrigados pelos guardas a limpar as sanitas com as próprias mãos.

Um terço dos guardas começou a abusar da autoridade. Despiram os prisioneiros, obrigaram a simular actos sexuais como o "felacio" e simular a sodomia. Em apenas 36 horas alguns prisioneiros já perdiam o controlo. Em vez de durar duas semanas, a experiência foi cancelada ao fim de seis dias. Eu acredito que esta “experiência” acontece hoje nas universidades portuguesas, todos os anos. Sem darmos conta.

Zimbardo concluiu que a personalidade individual não tem qualquer influência numa situação destas. As pessoas não são necessariamente boas ou más. Mas que a forma como reagem depende muito na situação em que foram colocadas. Na função que esperam desempenhar. Tive oportunidade de ver isto nos motins em Londres. Nem todos os que pilharam eram criminosos. Mas quando colocados naquela situação optaram por seguir a regra do momento.

Quando entrei na universidade também fui praxado. "Obrigaram-me" a tirar a t-shirt. Escreveram todo o tipo de mensagens embaraçosas no meu corpo a verniz. Encheram o cabelo com farinha e esparguete. Juntaram um grupo e "convidaram-nos" a fazer "piscinas" e a rastejar no chão, fazendo-nos crer que quem ganhasse teria castigos menos severos. "Convidavam" caloiros a fazer todo o tipo de posições sexuais, com colheres de pau, contra os postes...

Lembro-me de despirem, pintarem e sujarem os caloiros (desumanização de outros). De nunca nos tratarem pelo nome: caloiro/bicho/semi-puto (remoção de identidade). Seguindo uma hierarquia. São veteranos. Usam capa e batina. Emblemas na capa. Uma colher de pau (uso de uma farda e símbolos de poder). Vestem-se de forma bem diferente dos caloiros, mas todos de capa e batina. Logo, passando a ideia de que todos são um. Que representam um código superior (como o código da praxe), que é o que define os castigos e penas e que, por isso, desresponsabiliza o veterano (remoção de responsabilização individual, seguir ordens superiores).

Semelhanças com Abu Ghraib

O "dux" é o superior máximo (colocar poder total em apenas algumas pessoas). Colocam os caloiros numa situação completamente nova. Ambiente novo, completamente sozinhos (como os prisioneiros). Sendo facilmente manipuláveis. Os caloiros deixam-se praxar e os ex-caloiros praxam. “Foi assim comigo, vai ser contigo” (conformidade com a norma de um grupo de forma cega e acrítica). Os caloiros eram convidados a simular actos sexuais como o "felacio", a ir contra um poste ou simular sodomia. Nos anos seguintes, tive a oportunidade de confrontar algumas "bestas", mas nada fiz (tolerância por inactividade, ou indiferença). Visto assim é mais fácil ver o paralelo entre uma experiência nos anos 70 com as “experiências” nos "campus" das nossas universidades. E acho que, tal como se fez com Abu Ghraib, é bem mais fácil colocar estes casos numa caixa e chamá-los de "maçãs podres". É muito mais fácil dormir de noite quando pensamos que a maldade está restrita a apenas algumas pessoas bem identificadas.

“Nada é mais fácil do que denunciar alguém que faz mal. Nada mais difícil do que percebe-lo.” Fyodor Dostoyevsky.

Perceber, não é desculpar.

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