“Pompeia microbiana” descoberta nos dentes de esqueletos com 900 anos

Um autêntico ecossistema arqueológico, com uma “fauna” de bactérias e uma “flora” de resíduos alimentares antigos, foi agora revelado pela análise genética e biológica de tártaro dental datado da Idade Média.

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Tártaro nos dentes de um homem de meia-idade que viveu há uns 900 anos na Alemanha Christina Warinner

Uma equipa internacional de cientistas, entre os quais um português, realizou uma análise aprofundada do tártaro colado aos dentes de esqueletos medievais, revelando pela primeira vez o ecossistema que florescia há quase mil anos na boca humana. Os seus resultados foram publicados na última edição da revista Nature Genetics.

Já se sabia que a nossa boca é o “antro” de um grande número de bactérias, algumas das quais estão na origem de doenças moderadas a graves das gengivas que afectam mais de 10% da população mundial – e que por sua vez, essas doenças estão associadas a doenças cardiovasculares, pulmonares e outras.

Os microrganismos que colonizam a cavidade oral humana tentam aderir ao esmalte dentário formando placa – uma finíssima película de bactérias vivas à superfície dos dentes. Passados uns dias, essa placa solidifica devido à mineralização promovida pela nossa saliva, dando origem a sucessivos depósitos de tártaro – uma autêntica “pedra” que em muitos casos precisa de ser periodicamente removida por um dentista com instrumentos adequados.

O tártaro poderá não ser bom para a saúde humana, mas é uma benesse para quem faz arqueologia biológica, uma vez que a mineralização da placa bacteriana “preserva e captura vírus e biomoléculas de todos os domínios da vida”, escrevem Christina Warinner, da Universidade de Zurique (Suíça) e da Universidade do Oklahoma (EUA), e colegas. E de facto, ao realizarem uma análise “de alta resolução” ao ADN e aos resíduos biológicos contidos no tártaro de quatro esqueletos provenientes do mosteiro de Dalheim, na Alemanha (e aproximadamente datados de 1100 d.C.) os cientistas desvendaram não só informações inéditas sobre as doenças da boca que afectavam as pessoas na Idade Média, como também novas pistas sobre a sua dieta e sobre a evolução dessas doenças e da dieta entre a Idade Média e os nossos dias. Diga-se antes de mais que os quatro esqueletos estudados apresentavam sinais de algum tipo, mais ou menos avançado, de doença oral.

“Já sabíamos que o tártaro preservava as partículas microscópicas de comida e outros detritos, mas o nível de preservação das biomoléculas que vemos aqui é notável. Trata-se de um microbioma [comunidade de microrganismos que vive no nosso corpo] sepultado e preservado numa matriz mineral, uma Pompeia microbiana”, diz Matthew Collins, co-autor da Universidade de York (Reino Unido), citado num comunicado daquela universidade.

“[O nosso é] o primeiro estudo onde se fez uma análise aprofundada do ADN e das proteínas encontradas no cálculo dental [tártaro] de esqueletos. E também o primeiro a mostrar que é possível reconstruir o genoma de micróbios que habitaram a cavidade oral humana há uns mil anos e (…) encontrar fragmentos de ADN com origem na dieta dos nossos antepassados”, disse ao PÚBLICO João Rodrigues, co-autor português do estudo, que trabalha na Universidade de Zurique e no Instituto Suíço de Bioinformática (ISB) – e que participou na análise computacional das sequências de ADN extraídas das amostras de tártaro.

Uma das conclusões a que os investigadores chegaram – ao compararem o tártaro dos quatro esqueletos antigos com o dos dentes de nove pessoas actuais – foi que as bactérias que provocam hoje em dia as doenças crónicas das gengivas (ditas periodontais) são essencialmente as mesmas que há 900 anos. Como explicar uma tal estabilidade, tendo em conta as mudanças na dieta humana e as melhorias em termos de higiene oral que entretanto se verificaram?

“É provável que o tipo de micróbios que colonizam a nossa cavidade oral se tenha adaptado a esse ambiente ao longo da nossa evolução (tal como os que colonizam os nossos intestinos, por exemplo)”, responde-nos João Rodrigues. “Por essa razão, penso ser normal encontrar [nos dentes dos esqueletos] os mesmos micróbios que habitam presentemente” as nossas bocas.

Os cientistas conseguiram aliás reconstituir na íntegra, a partir de milhões de fragmentos genéticos contidos no tártaro medieval fossilizado – um autêntico puzzle genético que só foi possível resolver com a ajuda de computadores –, o genoma da bactéria Tannerella forsythia, conhecida por estar associada a formas avançadas de doença periodontal. “O tártaro dental é uma janela para o passado e pode mesmo vir a ser um dos registos mais bem preservados de micróbios associados à espécie humana”, frisa por seu lado o co-autor Christian von Mering, do ISB, citado no já referido comunicado.

E mais ainda: também descobriram que as bactérias antigas já possuíam a maquinaria genética de base necessária para desenvolver, mais de oito séculos volvidos, resistência aos antibióticos. Mais uma vez, há uma explicação para isto. “A existência de genes que conferem resistência a antibióticos aos micróbios portadores [desses genes] não é totalmente inesperada, se considerarmos que a maior parte dos antibióticos são produtos de origem natural produzidos quase totalmente por micróbios”, diz ainda João Rodrigues. “Os antibióticos são apenas armas químicas usadas por uns micróbios contra outros micróbios e por isso, [essas bactérias orais] terão evoluído mecanismos de defesa em resposta a esses produtos”. E isso muito antes da invenção dos primeiros antibióticos, nos anos 1940.

A análise do tártaro dos esqueletos também revelou a presença de resíduos alimentares. “Foram encontrados alguns fragmentos de ADN (…) que apontam para o consumo de carne de porco ou javali e de ovelha, bem como de hortaliça e trigo. E alguns fragmentos de proteínas analisados foram identificados como constituintes de proteínas do leite”, explica-nos ainda João Rodrigues, acrescentando que esses resultados foram a seguir confirmados por outros métodos.

“O estudo do cálculo dental em esqueletos tem enorme potencial para revolucionar a antropologia e o entendimento da nossa evolução”, diz ainda o investigador português, salientando que até aqui, grande parte do conhecimento acerca da dieta das civilizações antigas baseava-se apenas em indícios indirectos. Por outro lado, acrescenta, “a capacidade de encontrar o ADN de micróbios é extremamente interessante porque pode ajudar a entender as doenças ou pragas que possam ter afectado civilizações sobre as quais existam poucos ou nenhuns registos.”

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