A história, a geografia e a política

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1. A História ajuda-nos, muitas vezes, a compreender melhor a política. A história trágica da Europa durante a primeira metade do século XX consegue por vezes (felizmente poucas) entrar pelas brechas abertas na integração europeia neste tempo de crise existencial. A história da Ucrânia, cuja geografia a colocou no caminho do confronto entre impérios, também conta para a percepção do que se está a passar em Kiev. Muitos analistas sublinham que os acontecimentos violentos a que assistimos na Praça da Independência são a fronteira disputada entre “o Leste e o Ocidente”. Entre o “regresso” da Rússia, que luta para preservar o seu estatuto de “império” e uma União Europeia a viver uma crise dos seus próprios compromissos políticos.

É na Ucrânia, escreveu ontem historiador britânico Tomothy Garton Ash, que a Europa e que a Rússia jogam a natureza política do seu futuro. Para ser um império, a Rússia nunca estará pronta a abdicar da Ucrânia. Sem ela, a ideia de uma União Euroasiática que Putin quer construir não passará do domínio de algumas antigas repúblicas soviéticas, relativamente pobres e sustentadas por regimes ditatoriais. É aqui que é preciso abandonar a História, sem a esquecer, e colocar a geografia na sua devida dimensão.

A Europa, da Comunidade a seis à União a 28, foi o resultado da “negação” da História que marcou a primeira metade do século XX e parte da segunda. Foi uma construção política, lançada por homens com visão e acarinhada pela América, cuja presença no velho continente depois da II Guerra foi crucial para permitir a integração da Alemanha no clube das democracias civilizadas, fazendo dela um dos pilares do projecto europeu.  

A Europa sabe, melhor do que ninguém, que a política pode vencer a História e abrir caminhos novos para a relação entre as nações e os povos. Foi, de algum modo, essa Europa que, tarde e a más horas, voou para Kiev para tentar um acordo político, que serviu, pelo menos, para parar a escalada de violência. Catherine Ashton avisou para as dificuldades de aplicá-lo. O porta-voz de Obama, depois de transmitir o conteúdo de um telefonema do Presidente com o seu homólogo russo, também sublinhou a “fragilidade” deste acordo. Os últimos acontecimentos provam as dificuldades e exigem muita atenção. Apesar da acalmia, as estranhas movimentações do ainda Presidente podem significar que assinou o acordo já com um “plano B” no bolso. Não se sabe qual será. É difícil que seja o pior de todos os cenários: um movimento separatista na Crimeia.

2. Na realidade, aquilo a que muitos analistas chamam de “grande jogo de xadrez” tem já uma nova história. O império soviético, contra todas as expectativas, desmoronou-se quase sem violência. As guerras dos Balcãs travaram-se nas margens do império, quando a Rússia, ainda não de Putin, parecia mais colaborante. Durante dez anos, o Ocidente, animado pela sua estrondosa vitória na Guerra Fria, olhou para Moscovo como um poder enfraquecido, também ele atraído pela democracia e os mercados. Putin fez do seu primeiro mandato a oportunidade de provar que esta profecia estava errada. Na sua segunda reencarnação, a sua estratégica continuou a assentar na afirmação da Rússia como uma grande potência mundial, à qual o Ocidente tinha de prestar atenção. A “revolução laranja”, em 2004, obrigou-o a recuar mas não a desistir. A Europa considerou resolvido o destino europeu da Ucrânia. As lideranças pró-europeias (Victor Iuchenko e Iulia Timochenko ) encarregaram-se de destruir este caminho: guerras intestinas pelo poder, corrupção generalizada, afirmação dos “oligarcas” à imagem e semelhança da Rússia. Falhou a possibilidade de construir um país mais decente e mais desenvolvidos. Capaz, como a Polónia, de viver uma vida europeia e de estabelecer com a Rússia uma boa relação. Putin teve a sua vingança em 2010, quando o actual Presidente (o mesmo que foi afastado nas ruas em 2004), regressou ao poder eleições aceitáveis. A Europa encolheu os ombros.

Até que, num dia de Novembro do ano passado, o regime de Kiev abandonou subitamente o acordo de associação que tinha negociado com a Europa e que deveria assinar em Vilnius, durante uma cimeira da “parceria oriental”. A Europa foi derrotada sem sequer se ter dado conta disso. Pensou que, com muitas regras e pouco dinheiro, podia apresentar um ultimato à Ucrânia. A pressão de Putin sobre o (ainda) Presidente e a promessa de uma ajuda económica de emergência (num país que está á beira da falência) terão sido o elemento essencial desta alteração do jogo político. Mas foi também (e isso, Putin não viu) a faísca que desencadeou os acontecimentos actuais, levando para a rua uma onda de protestos contra o afastamento da Europa e a aproximação à Rússia. Putin olha hoje para a União Europeia como um continente dividido. Sabe que Obama precisa dele para resolver a tragédia da Síria ou negociar com o Irão. Jogou a sua cartada mas, aparentemente, avaliou mal a situação. Washington procura convencê-lo de que ambos podem ganhar na Ucrânia.

O risco maior, embora muito improvável, é a separação da Crimeia criando a oportunidade para uma intervenção russa nos moldes em que interveio na Geórgia, em 2008: para garantir a independência da Abkhazia e proteger os cidadãos russos.

3. De cada vez que a Rússia emerge na cena internacional para travar mais um braço-de-ferro com o Ocidente, vem-me à cabeça uma frase de Chris Patten, numa entrevista que lhe fiz já há alguns anos. “Tem em sua casa alguma coisa a dizer made in Russia?”. A Rússia assenta a sua capacidade económica no gás e no petróleo. Ainda pode exibir um arsenal nuclear gigantesco mesmo que envelhecido. Dispõem de formas muito duras de pressão sobre o seu “estrangeiro próximo”, graças à dependência energética. Tem, no entanto, uma economia estagnada, assente nos grandes negócios dos seus “oligarcas”. Precisa, em grande escala, da tecnologia e do investimento europeus para modernizar o sector energético e melhorar o padrão da sua economia.

É aqui que a Alemanha entra. Putin pode usar a sua habitual estratégia de dividir para reinar. É difícil contornar a Alemanha, de onde provêm a grande maioria dos investimentos. Gerhard Schroeder, o anterior chanceler social-democrata, estabeleceu uma ligação directa com Moscovo (tornou-se num grande amigo de Putin e da Gazprom) para a construção de um gasoduto que ligasse directamente por mar a Rússia e a Alemanha. Deixou de fora a Polónia, recém-entrada na União Europeia. O mesmo Radek Sikorski que ocupa o cargo de chefe da Diplomacia de Varsóvia e que foi um dos intermediários do acordo em Kiev, acusava Berlim de, mais uma vez, passar por cima do seu país. Angela Merkel não cometeu o mesmo erro. Manteve a mesma política, mas teve o bom senso de integrar a Polónia e de dizer algumas verdades a Putin. E isso faz, naturalmente, muita diferença. A “parceria oriental”, que começou por ser uma ideia sueca e polaca, é hoje um vector fundamental da política externa alemã.

O problema está em que a Alemanha assenta essa política no seu poder económico, sem uma visão mais ampla do que deve ser a estratégia europeia face a Moscovo. Em meia dúzia de anos, o “multilateralismo efectivo” que determinava a acção externa europeia e que se inspirava na sua própria experiência, deu lugar a um mundo cada vez mais multipolar em que a regra está a dar lugar à relação de forças. É do interesse europeu e americano que a política continue a dominar a História e a Geografia neste “ajuste de contas” com Moscovo. Mas a Europa tem também de perceber que a sua política regional não pode assentar apenas na economia e na capacidade de atracção. Como diz Garton Ash, joga-se também em Kiev o seu futuro como “potência estratégica”. E ainda não é tarde de mais. O facto mais extraordinário desta crise ucraniana é que há gente que olha para a Europa como um paraíso. E que está pronta a morrer por ele.

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