A grande ilusão de Wes Anderson (inspirada por Stefan Zweig)

Festival de Berlim inaugura com Grand Budapest Hotel . Bill Murray, Edward Norton, Willem Dafoe ou Ralph Fiennes acompanharam a estreia mundial do novo filme

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A equipa de Grand Budapest Hotel no Festival de Cinema de Berlim AFP PHOTO / JOHANNES EISELE

45 minutos antes da hora prevista, e já o grande salão do hotel Hyatt, recinto das conferências de imprensa do Festival de Berlim, está a rebentar pelas costuras. É o efeito Wes Anderson a funcionar, interesse genuíno em Grand Budapest Hotel, a nova obra do cineasta texano e filme escalado para abrir a Berlinale 2014 ao princípio da noite de quinta-feira? Ou apenas a sofreguidão de uma imprensa que precisa de alimentar a passadeira vermelha que se tornou numa das razões de ser de do certame alemão? A resposta chega pela boca de Bill Murray.

"Prometem-nos longas horas de trabalho e salários baixos," diz Bill Murray. "É de loucos, perdemos dinheiro a trabalhar com ele. Acabamos por gastar mais em gorjetas do que recebemos."

Mais à frente, Edward Norton é confrontado com uma pergunta importante: porque é que Wes Anderson o põe sempre de farda? "O Wes gosta de ver um homem de calças justas e dragonas. E eu gosto de lhe fazer o gosto," responde o actor.

Aí está, então, a resposta: Wes Anderson, um dos autores mais aclamados do cinema moderno (ver: Os Tenenbaums, Um Peixe Fora de Água, Darjeeling Limited, Moonrise Kingdom...), impecavelmente vestido de tweed cinzento e de corte de cabelo à pagem. Mas também Ralph Fiennes, Jeff Goldblum, Edward Norton, Tilda Swinton, Bill Murray, Willem Dafoe. Estão todos no pódio da sala do Hyatt, juntamente com os dois jovens actores do filme, a irlandesa Saoirse Ronan (Expiação) e o estreante Tony Revolori, e o produtor Jeremy Dawson.

A maioria de imprensa está lá pelos actores, que estão lá por Wes Anderson - muito embora quase todos tenham papéis minúsculos, uma ou duas cenas apenas (à excepção de Fiennes, Goldblum e Dafoe). Anderson pode pagar mal, lança Murray, mas permite-lhes "tornar real esta paisagem mágica de sonho. Nós temos o trabalho todo, mas ele é que se diverte."

Não é bem verdade: o pódio sobre-lotado está bem disposto, as piadas passam de microfone em microfone, como quando Willem Dafoe (cuja personagem no filme é um vilão sinistro) recebe um piropo de uma jornalista mexicana que diz tê-lo achado muito sexy no papel. Ou como quando Tilda Swinton, que surge irreconhecível no filme como uma milionária de 84 anos, diz que "Madame D é como eu sou quando não me maquilho".

Ralph Fiennes, mais a sério e mais sério, admite ser "muito invulgar ver um realizador a quem deixam fazer os filmes que quer do modo que ele o quer". "Como experiência de actor, foi fantástico," explica o veterano britânico. "O universo do Wes tem muitas restrições – ele é muito particular na pronúncia, no ritmo do diálogo que quer - e encoraja-nos a explorar e procurar ao longo de inúmeros takes." Uma performance com o seu quê de coreografada, como um bailado ou uma cena de acção - diz Anderson, ele próprio, numa mesa redonda algumas horas antes no luxuoso hotel Adlon (onde a equipa do filme assentou arraiais para a estreia mundial do filme em abertura de Berlim).

E Grand Budapest Hotel, então? Simultaneamente, mais do mesmo e outra coisa. Mais do mesmo, porque continua a ser aquele universo miniatural, preciosista, demiurgo, de casinha de bonecas super-detalhada, a que Anderson nos habituou. Outra coisa, porque este talvez seja o mais cinéfilo e o mais europeu dos seus filmes, assombrado como está pelo fantasma do escritor vienense Stefan Zweig e da ideia que Hollywood projectava da Europa de Leste. "Sempre pensei que a nossa Budapeste" - a do Grand Budapest Hotel que dá nome ao filme - "está ligada à Shop Around the Corner de Ernst Lubitsch, uma Budapeste do cinema e não da realidade."

O filme seria, então, uma história alternativa da Europa, vista pelo prisma de uma cinefilia ortodoxamente clássica (Anderson, na conferência de imprensa, fala de Lubitsch mas também de Rouben Mamoulian ou Frank Borzage, nomes grandes da Hollywood dos anos 1930 em que o filme se passa). Ou um lamento nostálgico mas não inocente por uma civilização (ou por uma civilidade?) perdida no tempo. Ou uma espécie de super-Wes Anderson onde tudo é potenciado ao máximo, uma boneca russa de flashbacks dentro de flashbacks, transportando as coordenadas de "casa de boneca" que o seu cinema sempre teve para dentro do modernismo dos primórdios do sonoro. (Fica-lhe bem.)

A história da luta pelo bom nome de M. Gustave, o concierge dos concierges (Ralph Fiennes entrosado na perfeição no universo de Anderson) procurando ilibar-se de um crime que não cometeu, passa-se numa Europa à beira da guerra a lançar os últimos foguetes do requinte e da “civilização” da Belle Époque. Podia ser a Viena de Zweig, mas tudo se passa na fictícia república de Zubrowka - inventada de corpo inteiro a partir das leituras do realizador (ainda Irène Némirovsky, escritora que morreu em Auschwitz, ou Hannah Arendt).

Faz sentido, Wes Anderson sempre foi o mais europeu dos realizadores americanos contemporâneos; alguém que, ainda assim, reconhece, na mesa redonda, nunca poder deixar de ser um estrangeiro nesta Europa. E que reconhece, também, estar arrependido por ter invocado os nomes de Arendt e Némirovsky, porque o seu filme não é uma história verídica, nem uma ficção inspirada pela realidade; antes uma tentativa de recriar em imagens o "encantamento" da escrita de Zweig, sem por isso enjeitar a seriedade dramática de um mundo que acabou.

A Berlinale e a 20th Century-Fox, estúdio produtor, não pouparam esforços para recriar esse encantamento. O Berlinale Palast tem uma réplica da entrada do hotel por baixo da escadaria principal. O hotel Adlon apresenta à porta uma das Vespas cor-de-rosa da (ficcional) confeitaria Mendl, cuja hedonista courtisane de chocolate desempenha um papel-chave na trama, e as suas caixinhas de bolos em tom de gelado decoram as mesas da sala de imprensa. E a maqueta da fachada do Grand Budapest Hotel usada no filme, construída e animada nos estúdios berlinenses de Babelsberg, está exposta no átrio.

Tudo para garantir mediatismo máximo para o que também é uma demonstração da moderna capacidade produtora da prata da casa - trata-se de uma co-produção alemã, rodada inteiramente na jóia da coroa que é o complexo de Babelsberg e na cidadezinha de Görlitz, onde o hotel local foi "requisitado" pela produção para alojar todo o elenco e equipa. Mesmo que Jeremy Dawson, um dos produtores, adiante: “Temos um modo muito especial e muito próprio de fazer filmes. O que acontece, na maior parte das vezes, é adaptarmos esse estilo ao sítio onde estamos a rodar, mais do que o contrário.”

Esse modo de fazer filmes, quase separado do mundo real, pode até ser a verdadeira chave de Grand Budapest Hotel. Como se diz a certa altura perto do fim, "o mundo de M. Gustave já tinha acabado muito antes de ele ter entrado nele. Mas soube manter a ilusão como ninguém." Podia ser uma descrição do universo de Anderson, feérico e estilizado, mas que o realizador prefere descrever assim na conferência de imprensa: "criar um mundo onde os actores possam brincar. E permitir-lhes criar gente de carne e osso no que parece um universo de fantasia.”

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