O problema das praxes não tem nada a ver com praxes

Grave não é a praxe, grave é os jovens sujeitarem-se ao que de mais irracional há nela, não demonstrando a capacidade de racionalizar os limites do que é aceitável

Foto
Fernando Veludo/nFactos

Sou anti-praxe. Nunca usei isso como estandarte, mas sou-o inevitavelmente. Qualquer pessoa que preze a sua integridade intelectual e moral (e física, algumas vezes), deverá necessariamente compreender a condição abjecta que sustenta essa actividade de falsa sociabilização, que muitas vezes acontece na sua forma mais ultrajante. A realidade, por vezes aterradora, mostrada na curta-metragem “Praxis” — que arrecadou o prémio de Melhor Curta-Metragem no DocLisboa de 2011 — é um retrato do funcionamento grotesco desta prática em alguns institutos do país.

Sou anti-praxe, não por ser uma actividade que promove a alienação (se fôssemos por essa ordem de ideias, meu Deus, há tanto neste mundo que se poderia erradicar), mas porque é uma espécie de contrato com cláusulas invisíveis que, na grande maioria das vezes, só serve para arrumar as pessoas em estruturas medonhas. A lógica da vingança que se perpetua de ano para ano é uma bola de neve que pode transformar a mais inocente criatura no déspota mais tirano. Numa tirada "à la" Abraham Lincoln: se querem ver o pior lado de uma pessoa dêem-lhe um traje e uma colher de pau.

Exagero. Claro que há praxes e praxes. Claro que há pessoas e pessoas. O conceito até é bonito, mas na prática fica feio. Por tudo o que me já foi dado a ver, quer com a minha passagem pela universidade, quer pelos fortuítos "encounters" com tais foliados e tristes acontecimentos, ao contrário do que muitos guardiões-da-tradição-académica tentam vender, a praxe não é uma brincadeira que sirva para integrar coisa alguma.

A praxe em si é inócua

Não sei o que um "caloiro não olha para cima" gritado a uma testa suja de tinta pode ajudar na maturação de um puto de 18 anos. Não sei o que um gastar de vozes em cânticos bacocos (barrocos?) em procissão pelas ruas da cidade pode ajudar na integração de um estudante na vida académica. Não sei o que poderá aprender alguém sobre o quer que seja com jogos pseudo-sexuais e sexistas, que só servem para alimentar o regozijo macabro na humilhação alheia. (Virgens, podem ter a certeza que rebentar um balão com a vossa zona pélvica contra o coxis de outra pessoa não vos trará o "know-how" que acham que traz.)

A praxe em si é inócua. Proibi-la seria tirar às pessoas a possibilidade de escolherem ser verdadeiramente donas da sua própria cabeça. Que haja praxes. Que haja coragem para se decidir albergar um rito sem sentido ou para mandar passear o cão ao senhor doutor. Mas, por favor, proibir as praxes é chamar de estúpida a uma juventude, que, com todas as suas imprudências, deve ter a obrigação de ser melhor do que as gerações anteriores.

O que tragicamente aconteceu no Meco foi uma coisa triste derivada de uma coisa triste. E é isso. O problema não são as praxes, o problema são as pessoas (como sempre, claro está). Grave não é a praxe, grave é os jovens sujeitarem-se ao que de mais irracional há nela, não demonstrando a capacidade de racionalizar os limites do que é aceitável.

Se alguém acha que não vai ter amigos, ou que não se vai conseguir integrar, porque não bebeu até ao arroto e ao vómito ao som de insultos, em estéreo, ainda por cima, então esse alguém ainda tem muito que aprender sobre si próprio e sobre os outros, e em última instância, sobre o mundo. Mais importante que aprender a balela da hierarquia é que cada um saiba assumir-se enquanto ser pensante, sem carneirismos. Sem ter a necessidade de subjugar-se à humilhação e ao auto-flagelo em nome de uma pseudo-tradição. Em nome do “para o ano vingo-me”.

Proibir as praxes não é cortar o mal pela raiz, é adubar o problema que as alimenta. Que se pare de dizer aos jovens que eles não são crescidos para assumir a responsabilidade das suas escolhas e actos. O que é preciso é encorajar-se a auto-reflexão e incitar ao livre pensamento, não privar-se destes.

Não acredito que as praxes sejam, como se lê por essas caixas de comentários fora, a "vergonha dos estudantes", "mais um atraso do país", "um espelho desta sociedade estupidificada treinada para ser obediente", "bla bla bla os políticos que temos", mas de uma coisa creio estar certo: o progresso humano não passa por aqui.

Sugerir correcção
Comentar