O empresário que esteve no exílio duas vezes

Jorge de Mello herdou cedo a gestão do maior grupo português, a CUF. Exilado com o avô, Alfredo da Silva, enfrentou, após as nacionalizações, um novo exílio, mais marcante. Viria a criar um novo grupo, com a ideia que um país não sobrevive sem indústria.

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Jorge de Mello, um dos empresários que mais marcaram o século XX português José Manuel Ribeiro/Arquivo

As memórias de Jorge de Mello do seu primeiro exílio não seriam muitas, mas nem por isso deixou de ser um período marcante na vida daquele que foi um dos maiores empresários portugueses do século XX. Neto de Alfredo da Silva, Jorge de Mello, que morreu sábado com 92 anos (hoje realiza-se a missa do 7.º dia às 20h na Basílica da Estrela) dividiu a sua infância entre Portugal e Espanha, onde o fundador da CUF no Barreiro procurou refúgio durante a conturbada fase final da I República.

Vítima de vários atentados, Alfredo da Silva colocou-se a salvo em Espanha após uma viagem de comboio que quase lhe custou a vida, na sequência da “noite sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, e que vitimou personalidades como Machado Santos. Apenas voltaria para Portugal após o golpe militar de 28 de Maio de 1926.

O primeiro neto masculino, Jorge de Mello, tinha nascido na quinta que Alfredo da Silva detinha em Sintra a 1 de Setembro de 1921, fruto do casamento de Amélia Silva (filha única) com Manuel de Mello.

Após montar a sua base no estrangeiro, o industrial deixa a Manuel de Mello a responsabilidade dos negócios em Portugal. A instabilidade, no entanto, fez com que Jorge de Mello acabasse por passar dois anos em Espanha. “O que a minha memória regista é muito pouco, o que certamente se explica por ter havido um esforço deliberado dos meus pais para ocultar os aspectos que poderiam ser mais marcantes na fase de formação de uma criança”, recordou o empresário, citado por Jorge Fernandes Alves. “Quando voltámos, eu teria sete anos, e a situação do país já era muito diferente.” Era a fase em que Salazar se preparava para consolidar o poder, montando as bases do Estado Novo a partir da Constituição de 1933.

A influência do avô
Além dos próprios pais, Alfredo da Silva teve uma forte ascendência sobre Jorge de Mello, mais do que no caso do seu irmão, José de Mello, que viria a nascer no final de 1927. “A influência do meu avô não poderia deixar de ser muito forte e por efeito da sua personalidade, muito afirmativo, muito determinado, com grande confiança em si próprio, mas, ao mesmo tempo, muito afectivo, empenhado em transmitir aos netos um quadro de valores e responsabilidades muito nítido.”

Foi, aliás, a pressão de Alfredo da Silva que fez Jorge de Mello ingressar no Instituto Superior Técnico. Quando Jorge tinha 21 anos, Alfredo da Silva morre na sua casa em Sintra. A partir daqui caberia ao seu pai liderar os negócios do grupo, que continuava a expandir-se para além do enorme complexo industrial da margem sul de Lisboa, contando já com o Totta e a seguradora Império.

Após a morte do avô, Jorge de Mello sente a liberdade de poder optar pela sua verdadeira vocação, e troca o Técnico pelo ISCEF, onde se irá licenciar em Económicas e Financeiras. O empresário, forte adepto de desportos como o ténis, não se arrepende da mudança.

“Penso que fiz bem em não obedecer à única imposição em que o meu avô quis inflectir a minha vontade ou a minha vocação”, afirmou. Para o empresário, o curso de Economia foi, ao longo da sua vida, “um motivo de prazer e uma ajuda muito importante para ter segurança” nas decisões.

Tempos de liderança
Após se ter casado com Maria Eugénia d’Orey Cunha no final da II Guerra Mundial, em 1945 (o primogénito, Manuel Alfredo, nasceu em 1948), Jorge de Mello depressa começou a aplicar na prática os conhecimento teóricos. Em 1948, passou a ocupar as funções de administrador delegado do grupo CUF, assumindo ainda a vice-presidência, cargo que também seria atribuído a José de Mello. Manuel de Mello, que continuara a expandir o grupo após a morte do sogro, ia-se afastando da gestão quotidiana por razões de saúde, passando os filhos a deter cada vez mais responsabilidades.

Jorge de Mello ficou com a vertente mais industrial, ligado à CUF, Sociedade Geral, e Tabaqueira, enquanto que a José de Mello coube a vertente financeira (Totta e Império) e, mais tarde, a Lisnave. Esta divisão haveria de ter influência na forma como os dois relançaram os seus negócios após as nacionalizações.

Manuel de Mello acabaria por morrer, vítima de Parkinson, em 1966, passando Jorge de Mello a assumir a presidência do grupo. Do pai Jorge de Mello guardava a imagem de “solidez”, sublinhando a importância que teve no desenvolvimento da CUF, gerindo a transição após a morte de Alfredo da Silva, e a forma como preparou a entrada em mercados fora de Portugal continental.

O empresário e o seu irmão ficam à frente dos negócios da família numa altura em que Portugal, já com a economia mais aberta ao exterior, vivia um momento de viragem, com a guerra colonial e o ocaso de Salazar. Oito anos depois, dá-se o 25 de Abril.

A prisão e nacionalizações
Quando se dá o grande surto das nacionalizações, em 1975, que atinge em cheio a CUF, o grupo era o maior a nível nacional, detendo perto de 180 empresas, responsáveis por cerca de 4% da economia portuguesa e por quase 50 mil postos de trabalho. Na altura, continuava a expandir-se, olhando para vez mais para a internacionalização e para o capital estrangeiro, ao mesmo tempo que alargara a presença a Moçambique, Angola, São Tomé e Guiné-Bissau. No leque das empresas contava-se a Compal, Tabaqueira, Lisnave, Setenave, Estaleiros Navais de Viana do Castelo, Fisipe, Soponata, Companhia de Nacional de Navegação, Banco Totta & Açores e a Império, marcando presença em sectores que iam da indústria química aos supermercados.

Após o 11 Março de 1975, Jorge de Mello é preso no edifício da CUF na Infante Santo, em Lisboa. “Na gaveta da secretária tinha uma pistola. Nunca saberei se estava disposto a utilizá-la, se contra quem aparecesse, se contra mim próprio para acabar com o pesadelo. Quando o primeiro-tenente Rosário Dias entrou pelo meu gabinete, sem ter pedido de autorização e de metralhadora em punho, o ridículo sobrepôs-se ao trágico e a pistola continuou na gaveta.” Esteve dez dias na prisão de Caxias, ao lado de uma cela ocupada pela família Espírito Santo. “Era preso por seu eu e só por isso”, recordou. “A total falta de informações sobre o que me queriam fazer e sobre o que se passava cá fora era o mais difícil de suportar”, acrescentou. A intervenção de várias personalidades, entre as quais o então Presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, permitiu o regresso à liberdade e preparar o segundo exílio.

“Estava perante uma situação parecida com a que o meu avô tinha vivido nos anos 20. Os contextos históricos eram muito diferentes, mas as motivações das partes envolvidas eram semelhantes.” Com apoio do banqueiro britânico Charles Hambro, instala-se na Suíça, onde permanece por três anos e de onde parte para o Brasil. Aqui, diz, tudo o que fez estava marcado “e condicionado, pelo seu carácter transitório”.

Regresso a Portugal
O ano de 1980 é o do regresso a Portugal, já com 60 anos. Nesta fase, o Estado preparava o pagamento de indemnizações por causa das nacionalizações, ainda inscritas na Constituição como “irreversíveis”. Monta um pequeno escritório em Lisboa e começa a desenhar um novo futuro. Em 2003, em entrevista à revista do grupo do irmão, afirmou que a decisão mais difícil da sua vida empresarial foi o que fazer com os títulos de indemnização atribuídos, único capital que tinha disponível, além do resultado da venda de imóveis como a casa de Sintra, e a herdade do Peral no Alentejo, que vendeu a Américo Amorim. Na ocasião, este ter-lhe-á dito que o preço poderia ser qualquer um, pois era o homem mais rico de Portugal. “Também já usei disso”, terá respondido Jorge de Mello.

Sobre os títulos de indemnizações ficou sempre o amargo, além das nacionalizações propriamente ditas, de o valor ser baixo e pago por vários anos. “Quando me perguntam se fui indemnizado, apenas posso dizer que tenho estado a ser indemnizado, e continuarei a sê-lo, até que se completem 28 anos, à taxa de 2,5% ao ano”, afirmou à revista Exame em 1989.

Em relação às nacionalizações, apelidou-as de “erro terrível”, defendendo que estas foram o grande entrave ao crescimento das empresas portuguesas, e uma das razões que explicam a ascensão das empresas espanholas no mercado ibérico.

Embora, como sublinhou, nem ele nem o irmão estivessem dispostos a desistir, estava claro que “não voltaria a existir o grupo CUF”, e que “juntar esforços era somar riscos e isso é o que o empresário não pode fazer”. Jorge de Mello apostou na indústria, José de Mello (já falecido) concentrou-se na banca e serviços.

A primeira grande decisão de investimento foi a Alco, paga com títulos de indemnização, e, lentamente, foi comprando outras empresas e participações, nomeadamente as que eram detidas pelo IPE, a antiga holding estatal. A Alco, empresa de óleos alimentares, seria integrada na Nutrinveste, que também viria a ficar com Jorge de Mello. Ia-se formando um novo grupo familiar, e diversas empresas que tinham sido da CUF voltavam à esfera dos Mello. A Compal é apenas um de vários exemplos.

Em 2003, naquela que foi uma das suas últimas grandes aparições em público, Jorge de Mello marcou presença na inauguração da nova fábrica da Compal, na altura gerida por António Pires de Lima, actual ministro da Economia. Por essa altura já se afastara da gestão quotidiana dos negócios, passando a cadeira ao filho Manuel Alfredo.

De acordo com Jorge Fernandes Alves, continuava a jogar ténis, viajava, confraternizava com amigos e ia comentando os jogos do seu clube, o Sporting, com as netas. Além disso, sendo um homem religioso, como escreve o autor da sua biografia, meditava.

Quanto à Nutrinveste, foi-se concentrando nos negócios dos óleos alimentares e azeite, vendendo empresas como a Triunfo e a Compal, e apostou na internacionalização. Hoje, quem está no grupo é o seu neto, Jorge de Mello, administrador e vice-presidente da Sovena (detida pela Nutrinveste) e que se tornou numa das maiores do mundo do sector, através de marcas como Oliveira da Serra e Fula.

Jorge de Mello, que sempre teve a ideia de que uma economia não podia prescindir da indústria, recusava a ideia de reforma. A Jorge Fernandes Alves afirmou: “Não há o direito de reforma para um empresário, nem vejo como é que quem se dedica a dominar o risco e a organizar a realização de projectos poderia desligar-se dessa vida sem ser pela morte. Depois da morte, sim, espero poder repousar.”

Bibliografia: Jorge de Mello, Jorge Fernandes Alves; revista Exame N.º1, Abril de 1989, A história que ninguém contou, Jorge de Mello por Jorge de Mello; revista Fortunas e Negócios, Empresários do Século XX, Jorge de Mello e José de Mello, Luís Villalobos e Filipe S. Fernandes; revista Olá/Semanário de 23 de Setembro de 1995; O último imperador, Rita Almeida Dias
 
 
 

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