Os comerciantes estão a defender os seus resultados “e não os interesses dos consumidores”

Foto
Vítor deixa liderança executiva da SIBS Enric Vives-Rubio

Vítor Bento, presidente da SIBS, diz que a decisão do Pingo Doce de restringir o uso de cartões nos supermercados é uma técnica negocial que não o surpreende.

No rescaldo da restrição de uso de cartões de crédito e de débito decidida pela cadeia de supermercados Pingo Doce, Vítor Bento, presidente da SIBS, classifica a medida da Jerónimo Martins como uma “arma negocial” para tentar reduzir as comissões cobradas pelos bancos aos pagamentos electrónicos no comércio. O fenómeno dos cartões de débito diferidos, noticiado pelo PÚBLICO já depois da entrevista presencial, motivou perguntas adicionais ao presidente da SIBS, respondidas por e-mail.

Esta semana soube-se que os bancos estão a entregar aos clientes cartões de débito diferido, um misto entre débito e crédito, que lhes permite receber comissões mais elevadas. A distribuição tem notado um aumento no pagamento de comissões por cartões de crédito. A SIBS tem números disponíveis sobre estes pagamentos?

Em primeiro lugar, o PÚBLICO e os meios que reproduziram essa notícia usaram abusivamente a marca Multibanco numa notícia que nada tem a ver com esta marca. A situação referida apenas envolve cartões de marcas internacionais, Visa e MasterCard. Existem basicamente três tipos de cartões: de débito imediato, onde a conta do utilizador é debitada imediatamente pelo pagamento efectuado; de crédito, onde o pagamento é feito contra um crédito automaticamente concedido ao utilizador e que, durante um determinado período é gratuito mas se for prolongado passa a ser sujeito a juros; e de débito diferido, onde a conta do utilizador é debitada com o desfasamento de alguns dias relativamente à data do pagamento (existe, portanto, um crédito, gratuito, de muito curto prazo). Cada tipo corresponde a diferentes necessidades e oportunidades e tem por isso modelos de negócio (remuneração) diferentes. Apenas os cartões de marcas internacionais – Visa e MasterCard – têm produtos para aquelas três funcionalidades. O cartão da marca nacional, MB, apenas tem a funcionalidade de débito imediato. [Quanto às transacções visadas], não dispomos de números.

O aparecimento destes cartões vem agravar a tensão entre comerciantes e banca?

Como presidente da SIBS não quero assumir o papel de analista dessa relação.

A APED diz que em Portugal as taxas cobradas pelo uso de cartões são 2,7 superiores à média europeia nas operações a débito e custam 2,1 vezes mais nas de crédito. Porque é que as comissões são mais caras em Portugal?

Em primeiro lugar, não sei se isso é verdade. Ainda ninguém demonstrou com valores concretos o que afirma. Por outro lado, essa comparação será sempre muito difícil. Depende do que é que se compara e como se compara. Por exemplo, que tipo de serviço está incluído no preço e que serviços são pagos à parte. Há sistemas que têm um preço mas, depois, há uma quantidade de serviços que em Portugal estão incluídos no preço base e noutras geografias são pagos à parte. Por isso a comparação não tem sentido.

Não há nenhum outro país com um sistema semelhante ao nosso?

Depende das condições comerciais. Uma coisa é a componente de execução, outra é como o preço é feito: depende se há vendas mensais, se paga comunicações ou a verificação de fraudes. Depende, por exemplo, de quando é que o dinheiro é posto à disposição dos comerciantes. O preço também depende do valor da transacção média. Além disso, é preciso ter em conta como funcionam os modelos de negócio no sistema de pagamentos, ou seja, a forma como se recuperam os vários custos globais. Ao contrário do que sucede em Portugal, há geografias onde os utilizadores de cartão pagam pelas operações feitas em ATM [caixas Multibanco]. Obviamente que isso altera todo o modelo de negócio. É natural que tenha de haver compensação noutros segmentos do sistema para que os custos sejam recuperados.

Todas essas variáveis não são comparáveis?

O que importa é ter em conta o que é que os vários sistemas proporcionam. A remuneração adequada ou desadequada dos serviços é um incentivo ou desincentivo à inovação. Muitas vezes, sistemas com preços demasiado baixos são sistemas que não inovam e são relativamente atrasados do ponto de vista tecnológico. Fala-se no caso da Paypal mas não se diz que estas transacções custam mais.

A questão é que os comerciantes se queixam das comissões elevadas.

Esta questão tem de ser entendida como uma negociação entre duas partes: um cliente (os comerciantes) e um fornecedor (o sistema bancário). Portanto é uma negociação onde se disputa uma parte da cadeia de valor. Mas esta negociação em particular não é diferente da que as grandes superfícies têm com outros fornecedores como se viu, por exemplo, em reportagens televisivas sobre a forma como negoceiam com os produtores agrícolas. Aqui, a diferença é que os poderes negociais são mais equilibrados.

Mas do seu ponto de vista não há, então, nenhum estudo credível que permita fazer comparação das taxas cobradas pelo uso de cartões?

Não conheço, mas também não pretendo ser juiz nesta causa. Não negoceio comissões. A SIBS não está nessa parte da cadeia de valor. Mas era muito importante perceber que, nesta negociação, os comerciantes estão a defender os seus interesses e a sua conta de resultados e não os interesses dos consumidores, como pretendem fazer crer e como muitos opinadores parecem acreditar. Posso dar o caso da Austrália onde as autoridades acabaram por impor administrativamente uma redução substancial nas comissões pagas pelos comerciantes. Qual foi o resultado para os consumidores? Os preços no comércio não baixaram e os bancos tiveram de se ressarcir dos prejuízos aumentando os custos para os utilizadores.

Era o que aconteceria em Portugal caso se optasse por uma medida semelhante?

A teoria económica sugere que sim e a experiência australiana aponta nesse sentido.

Qual é o papel da SIBS neste processo de pagamentos com cartão?

No pagamento electrónico há quatro intervenientes directos. Há dois que são visíveis: o utilizador do cartão e o comerciante. Depois, há mais dois intervenientes fundamentais. O aceitante (acquirer), que contrata com o comerciante o serviço de pagamento e lhe assegura que vai receber o dinheiro da transacção no prazo devido. Depois, o banco emissor do cartão, que é quem garante que o titular do cartão tem saldo na conta ou crédito disponível para fazer o pagamento e procede à transferência do dinheiro. Há mais dois intervenientes indirectos. Os donos dos schemes (marcas) dos cartões utilizados – Visa, Mastercard, American Express, Multibanco, que é a nossa marca – cujas regras governam a transacção e são o ponto de encontro contratual entre todos os outros intervenientes. Por último, há os processadores como a SIBS que asseguram a transmissão electrónica. Ou seja, asseguram que o cartão é verdadeiro e que corresponde a determinado utilizador. Em Portugal, a SIBS faz o processamento de quase todas as transacções. Se for feita sob a marca Multibanco intervém a SIBS Pagamentos que gere o scheme Multibanco.

Quantas transacções em Portugal são feitas com a marca Multibanco?

Um terço. As restantes são feitas sob as marcas internacionais, apesar de as pessoas habitualmente usarem o termo multibanco para caracterizar os cartões de débito, mesmo quando são Visa Electron ou Maestro. Quanto às remunerações da transacção o processo é este: pela concretização do pagamento, o comerciante paga ao acquierer uma comissão que depende de vários factores aplicáveis, mas tanto quanto eu sei não tem nada a ver com os valores de 4 ou 5% que têm sido apontados. Depois, o acquirer tem de pagar ao banco emissor uma outra comissão – a interchange fee, que é a maior parcela da remuneração total. É o banco que garante que o cliente tem dinheiro ou crédito na conta e transfere o dinheiro. Além disso, o acquirer e o banco pagam ao processador e também ao gestor do scheme do cartão usado.

Quais são os valores cobrados pela SIBS?

Entre 1 a 2 cêntimos pelo processamento total da transacção. Nos casos em que intervém a SIBS Pagamentos (como gestora da marca MB), cobra pelo uso do scheme entre 0,027 e 0,044 cêntimos.

Mas quer a SIBS quer a Unicre têm bancos como accionistas. E cabe aos bancos decidir baixar as comissões.

Mas porquê baixar e não subir? Se é um processo negocial entre o preço de um bem porque é que o único caminho é de descida? Não me compete a mim falar, mas nos últimos cinco, dez anos as comissões em geral têm baixado, o que não aconteceu com o índice de preços ao consumidor.

Encara a decisão do Pingo Doce como forma de pressão para a diminuição das taxas?

Esse é um processo negocial entre partes em que cada um tenta usar os instrumentos de pressão que tem. Sobre essa parte não me vou pronunciar. Seria desejável que os consumidores fossem o menos afectados possível. Estamos empenhados na criação de um sistema de pagamentos eficaz, cómodo e seguro, que contribua para o bem-estar dos portugueses, e encaramos [a decisão do Pingo Doce] com preocupação. É um retrocesso no caminho de progresso do país e gostaríamos que a paragem de aceitação de cartões não fosse utilizada como arma negocial.

Teme que a medida seja seguida por outras empresas?

O que sei é que é um retrocesso. Preocupa-me o facto de nós, Portugal, não termos muitas áreas onde sejamos líderes mundiais e nesta área somos. Além do mais, há a ilusão de que o numerário é gratuito. Não é verdade. É, aliás, o instrumento de pagamento com custo social mais elevado. Boa parte do custo está nos bancos e não é ressarcido directamente. A outra parte é suportada pelos comerciantes e pelos consumidores mas não há desembolso directo e, por isso, cria-se a ilusão de que é gratuito. Disponibilizar todos os meios de pagamento custa à banca 1300 milhões de euros por ano. E só recupera cerca de 70% desse valor.

A Autoridade da Concorrência arquivou queixas contra a SIBS, Unicre e Visa mas deu início a um processo de supervisão do mercado dos sistemas de pagamento. Há pouca concorrência neste sector?

Essa é outra das acusações infundadas. Há menos concorrência do que o quê? É que a grande distribuição não é um sector onde haja muita concorrência, por exemplo. Nos pagamentos, no campo da aceitação das marcas internacionais, a Unicre tem a concorrência da Caixa Geral de Depósitos, da Netpay, da Caixa Agrícola e, em alguns casos, de aceitantes estrangeiras. Na aceitação da marca Multibanco todos os bancos concorrem entre si. A SIBS também tem concorrência, em menor grau, mas tem. Já há outros processadores a operar no nosso mercado. Não escondo que fico preocupado com certas opiniões mais ligeiras. O processamento, que é o que fazemos, é uma actividade onde a escala é fundamental. O surgimento da SIBS teve, entre outras, a virtude de conseguir escala numa actividade onde dispersamente não seria possível sobreviver. Por isso, os concorrentes nunca surgirão do mercado doméstico.

Ficou surpreendido com a decisão do Pingo Doce?

Sim, na medida em que é uma acção de retrocesso. Retira o acesso a uma actividade simplificadora, cómoda e segura. Em termos de técnica negocial, não necessariamente.

Como vê a criação de um modelo de pagamentos alternativo por telemóvel que está a ser preparado pela PT para a restauração?

Provavelmente, o primeiro sistema de pagamentos por telemóvel no mundo foi criado pela SIBS. Portanto, não é novidade. Tudo depende de como funciona o modelo de negócio. E quaisquer dos sistemas nunca serão gratuitos.

O Ministério das Finanças já disse que a renúncia à utilização dos terminais de pagamento é motivo para reforçar a inspecção tributária às empresas. Os terminais de pagamentos electrónicos tornaram-se em instrumentos de fiscalização?

Não faço ideia e julgo que esse é um mau caminho, na medida em que pode afugentar os comerciantes da utilização desse instrumento. Normalmente, do que conheço, o combate à fraude fiscal é feito através da criação de incentivos fiscais à utilização do cartão e não através do policiamento das transacções com cartão.

Sugerir correcção
Comentar