O fim do nuclear na Alemanha: Ano – 1, Acção – 0

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A Alemanha precisa até 2022 de 35% de energia solar, eólica, hídrica e biomassa para substituir o nuclear Christian Charisius/Reuters

Imagens não faltam por estes dias aos alemães para descreverem as suas próprias dificuldades em levar em frente a "revolução energética" prometida por Angela Merkel há um ano. É "aterrar pela primeira vez na lua", fazer do país "um enorme laboratório de energia" ou "uma maratona a cuja linha de partida a Alemanha ainda não chegou", escrevem e dizem empresários, gestores, políticos e consumidores em privado ou na televisão, nos jornais e nos blogues. "É uma operação de coração aberto", segundo a ministra-presidente do estado federado da Renânia do Norte-Vestfália, Hannelore Kraft, que pede um "plano director e uma monitorização cuidadosa para que a operação tenha sucesso". A chanceler alemã, Angela Merkel, aceita que é um "trabalho hercúleo".

A aventura que está por detrás do fecho das 17 centrais nucleares até 2022 e da meta de 80% de electricidade renovável em 2050 é também comparada com a reconstrução do pós-guerra. Ao fim de um ano, a discussão atravessa o país por causa dos atrasos e da factura do projecto. No fim de Maio, Merkel ouviu críticas dos líderes dos 16 estados federados da Alemanha, reunidos para discutir os problemas da transição energética. Não saíram grandes medidas do encontro, apenas o acordo de voltarem a encontrar-se semestralmente para avaliarem os progressos do programa.

Numa das suas últimas comunicações semanais, a chanceler reconheceu que o país está "atrasado em vários projectos", depois de o seu Governo de coligação ter sido criticado por falta de coordenação e de acção. O consenso social e político contra o nuclear na Alemanha não faz sozinho a revolução.

Sob a bandeira da protecção do clima, da sustentabilidade e da liderança nas renováveis, o Governo alemão espera da economia verde o impulso de uma década de crescimento e criação de emprego. O sector dos bens ambientais atingiu os 78 mil milhões de euros em 2008 e estima-se que o mercado global das tecnologias ambientais duplique dos valores de 2007 para três biliões (milhões de milhões) em 2020. Mas isso é a oito anos. Hoje, a maior economia da UE está a arrefecer, depois de um tímido 0,5% de crescimento no primeiro trimestre de 2012. Apesar de uma taxa de desemprego globalmente baixa e em queda, não tem encontrado solução para as regiões da ex-RDA, com 12% de desemprego e onde as energias renováveis prometem ser uma saída. O projecto da aldeia brandeburguesa de Feldheim, de auto-suficiência energética é um exemplo nacional.

O Governo não faz previsões sobre o emprego a criar com o plano, mas defende que a gradual transformação do sistema energético tem sido uma "importante fonte de estímulo económico". Cerca de dois milhões de pessoas trabalham hoje na indústria ambiental e no sector das energias renováveis, na Alemanha, o que significa que um em cada 20 postos de trabalho está directamente ligado à protecção ambiental. Em sete anos, o emprego nesta área mais do que duplicou, estimando-se que ocupe acima de 380 mil pessoas, mais de um terço das quais na energia solar.

Para cumprir a mudança, a Alemanha precisa, dentro de 10 anos, de 35% de energia solar, eólica, hídrica e biomassa para substituir o nuclear, que representa hoje menos de um quinto das necessidades de electricidade do país. Em 2050, a meta de renováveis é de 80% da electricidade e 60% do consumo final de energia.

O empurrão não chega

Não há um número certo para o investimento necessário. Anunciado em 2010 e ajustado em 2011 na ressaca do desastre de Fukushima, quando a Alemanha decidiu antecipar o fim de todo o seu nuclear para 2022, o plano de mudança energética pode custar 200 mil milhões apenas nos primeiros 10 anos, segundo as estimativas oficiais, enquanto entidades independentes falam em mais de 300 mil milhões. Qualquer que seja o valor, será sempre superior aos 170 mil milhões de euros do PIB português. E 200 mil milhões são 8% do PIB alemão.

Falta ainda fazer contas aos 30 anos seguintes e aos custos de desmantelamento das centrais nucleares. A Comissão de Regulação do Nuclear estima-os entre 280 a 612 milhões de euros por central, mas pode ser superior. Em França, o desmantelamento da pequena central de 70 MW de Brennilis arrasta-se há 20 anos e já ultrapassou o orçamento em 480 milhões de euros.

A coligação de centro-direita criou uma linha especial de cinco mil milhões de euros no banco público KFW para financiar a eólica offshore nos mares do Norte e do Báltico e um fundo de mais 200 mil milhões de euros para investigação e desenvolvimento no armazenamento de energia. No entanto, o empurrão não chega. O sector financeiro, fragilizado com a crise do euro, não se mostra interessado na maratona e os investidores privados, sem a abundância de capital do passado, também não.

Embora o plano seja desenhado pelo Governo, é dos privados que se espera a acção. Sem essa resposta, o país assiste a uma cada vez maior intervenção do Estado, sublinhava há dias a edição alemã do Financial Times.

As operadoras eléctricas com menos fôlego pedem, agora, mais financiamento do KFW e o Governo já assumiu, por exemplo, o risco económico de alguns investimentos na expansão da rede. Entidades independentes alertam para os riscos de a falta de capital privado poder agravar ainda mais o custo da factura dos consumidores de electricidade, que pagarão do seu bolso a expansão da rede e das energias renováveis. O Instituto de Tecnologia Karlsruhe calcula que os preços para a indústria subirão 70% até 2025, com impacto na sua competitividade e o ministro da Economia, Philipp Rösler, confessa "estar muito preocupado com a forma como os preços estão a subir".

E há outra ordem de custos para a qual o Governo começou a ser pressionado. A actividade das centrais a gás natural está a cair e a perspectiva de margens negativas leva algumas a equacionar o encerramento. No entanto, são centrais consideradas vitais na transição energética, por poderem compensar de forma rápida as variações da energia renovável. E uma eventual saída do sistema beneficiaria as centrais a carvão, o que o Governo quer evitar por serem grandes poluidoras. A provável solução para o problema é conhecida dos portugueses e dá pelo nome de garantia de potência. Ou seja, as centrais alemãs poderão passar a ser compensadas por uma disponibilidade permanente para entrar em actividade, produzam ou não, o que o Governo português acaba de restringir à EDP e Endesa.

A primeira contagem de tempo para quem beneficia desta aventura dá uma perspectiva irónica. Para já, as empresas mais rápidas a responder e a beneficiar dos incentivos em vigor não são alemãs, mas sim chinesas e dinamarquesas, no caso mais conhecido, que é o da energia solar. Citam-se a Suntech, a maior empresa solar do mundo e chinesa, e a Vestas, a maior eólica do mundo e dinamarquesa.

O deputado do SPD, Ulrich Kelber, que é a cara da oposição em matéria de ambiente, sustentabilidade e energia, queixa-se. "Oitenta por cento das empresas que concorrem nas renováveis vêm da China. Diz-se que a Alemanha não pode competir com a China ou Malásia nos módulos fotovoltaicos, por causa dos preços, mas os nossos subsídios estão a ir para as empresas chinesas. Temos de incentivar a investigação para que o preço do fotovoltaico baixe na Europa".

Integrar tudo e a tempo

A dificuldade maior é integrar, e a tempo, todas as novas fontes de energia, mais descentralizadas e com mais fluxos num sistema que será muito mais flexível do que o actual. Segundo os quatro operadores da rede eléctrica, congéneres da REN, será necessário modernizar 4400 quilómetros de linha - mais do que a distância entre Lisboa e Telavive - e instalar mais 3800 quilómetros de linha nova. Ao mesmo tempo, é necessário montar 25.000 MW de eólicas nos mares do Norte e Báltico, o equivalente à potência de 25 centrais nucleares, construir novas centrais a gás, desenvolver tecnologia de armazenamento de energia ainda por dominar e desmantelar centrais nucleares e armazenar o seu lixo.

Dezoito milhões de edifícios são também abrangidos pelo programa. Têm de ser melhorados em termos de eficiência energética, isto a uma taxa de 2% ao ano nas próximas duas décadas. Os técnicos já dizem que o ritmo real de obras não chega para cumprir as metas e é preciso acelerar para 2,5% ao ano.

Para a urgência em que se o plano se baseia, Ulrich Kelber chama a atenção para dois factos: a oposição popular a novas linhas de alta tensão vai gerar processos em tribunal, que podem arrastar-se anos, e não acredita numa solução para o lixo nuclear mais perigoso antes de 2035/2040. Há anos que se estuda uma velha mina no Norte. Parecia o local adequado, mas, "antes, a mina estava junto à fronteira da RDA, hoje está no centro da Alemanha..." Quanto à eficiência energética, diz que é o "gigante adormecido" do programa, representando 40% do consumo energético do país e um potencial de poupança para as empresas de 10 mil milhões de euros anuais.

Kelber não se impressiona com a ambição das metas. "Com o ritmo a que temos investido em renováveis chegaremos aos 80% em 2030". O país já tem, em média, 20% da sua electricidade produzida por renováveis e, no final de Maio, a energia solar instalada bateu um recorde histórico ao satisfazer metade das necessidades de consumo de electricidade, durante cerca de uma hora em dois dias seguidos. "Este é o lado positivo", diz. No "lado escuro", coloca a "ausência de um verdadeiro debate europeu" sobre um plano que altera radicalmente o mapa energético de um país que é exportador líquido e vai passar a importar. "Nós temos impacto sobre os outros países", sublinha.

O novo mapa energético não se deve limitar à Alemanha. "Vai desde o sol de Espanha até ao vento do Mar do Norte, para facilitar o balanceamento da energia renovável. O sucesso da transformação da energia na Alemanha depende muito da Europa", afirma Brigitte Knopf, do Instituto de Potsdam para a Investigação do Impacto Climático.

Os alemães ainda não falam para a Europa e estão internamente divididos. Se não têm dúvidas quanto ao fim rápido do nuclear, não se entendem quanto ao caminho a seguir. O Governo quer expandir a energia eólica offshore, nos mares do Norte e do Báltico e transportar a electricidade até ao Sul industrializado, onde se encontra a maioria das centrais nucleares a fechar. Os estados do Sul têm respondido que a solução os vulnerabiliza e que se devia investir em mais solar no Sul, mais próximo dos centros de consumo. Dizem que o modelo do Governo favorece os grandes operadores que vão ficar sem as centrais nucleares, nomeadamente a EON, que vai ficar sem sete. Uma solução combinada e de menor impacto económico seria preferível para a Agência Internacional para as Energias Renováveis (IRENA): expansão de fotovoltaico no Sul associada a barragens com bombagem da Suíça e da Áustria.

O ministro Philipp Rösler, veio responder às críticas, reconhecendo que a transição energética da Alemanha "não funcionará sem uma perspectiva europeia", especialmente em relação às vizinhas França e Polónia, e que "faz sentido que se trabalhe em conjunto". Falta passar à acção.

Apesar das incertezas e divisões, as sondagens mostram que os alemães continuam a concordar com o fim do nuclear e reagem de forma neutra à iminência de agravamento da factura da luz.

Segundo uma sondagem recente para a estação de televisão ZDF, 76% dos alemães apoiam a mudança, com a maioria a dizer que "está no tempo" ou é "demasiado devagar". O índice de avaliação de progresso do plano de transição pelos decisores, criado pela Agência de Energia da Alemanha e Ernst & Young, revela um resultado neutro no primeiro trimestre do ano, com os industriais mais pessimistas e os políticos mais optimistas. Numa escala de zero a 200, o resultado global ficou em 100,8. Não será por falta de aceitação social que o plano falhará, se falhar.

Hans-Joachim Ziesing, consultor sénior do Instituto Ecologic, um think-tank de políticas ambientais e de sustentabilidade, pensa que só há um caminho. "Temos mesmo de o fazer".

Se a Alemanha conseguir, "será um modelo para o mundo", afirmava o ex-ministro do Ambiente Norbert Roettgen, que Merkel afastou no mês passado. Senão, "será um desastre para ela própria", diz Cláudia Kemfert, especialista sénior em energia da DIW.

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