"Hoje a figura do consumidor é mais importante do que o trabalhador"

Foto
A cadeia do grupo Jerónimo Martins recusa as críticas de falta de planeamento DR

A cadeia do grupo Jerónimo Martins promete mais campanhas e descontos. O Governo admite produzir nova lei para travar promoções inesperadas. Uma campanha inesperada entre críticas e elogios.

São dez da manhã e não há detergentes na prateleira. Sobram quatro embalagens de farinha, a manteiga e o bacalhau desapareceram, também não há leite. A redução para metade do preço de todo o stock de produtos dos 369 supermercados Pingo Doce no feriado do 1º de Maio deixou os trabalhadores com ar cansado e lojas ainda com vestígios da campanha, inédita em Portugal.

No dia seguinte, o supermercado do Laranjeiro, em Almada, ainda tinha cestos no chão, onde garrafas de cerveja se misturavam com maçãs. Os poucos clientes deambulavam, meio perdidos, entre as prateleiras vazias. "Pensei que era uma revolução. Não sabia que ia haver desconto e fui apanhada de surpresa", diz uma senhora de idade, meio surpreendida com a ausência de produtos. Na caixa, uma funcionária desabafa: "Foi horrível."

O grupo Jerónimo Martins já tinha avisado que, tendo em conta as reduções do rendimento disponível das famílias, iria reforçar o "posicionamento de preço" do Pingo Doce e, em consequência, a "competitividade da sua proposta ao consumidor". Os resultados do primeiro trimestre mostram quebras de vendas de 0,8% em comparação com o período homólogo de 2011, tendo em conta o mesmo número de lojas. Com os sete novos supermercados abertos nos primeiros três meses do ano, a facturação cresceu 2,1%, para 751 milhões de euros. Utilizando promoções agressivas o grupo liderado por Pedro Soares dos Santos muda a estratégia e espera inverter a tendência negativa a partir de Junho.

Mas a inesperada campanha de 50% de desconto imediato para compras superiores a 100 euros surpreendeu tudo e todos. Sobretudo porque este é o supermercado que garante não ter "talões e complicações" e que, em cartazes pendurados nas suas lojas, explica que no Pingo Doce a palavra promoção "não existe". "Porque promoção quer dizer "vendemos barato só hoje, amanhã não". E isso aqui não acontece", lê-se, numa fotografia desse cartaz pendurado na loja de Telheiras, em Lisboa, e que ontem foi partilhada no Facebook.

As opiniões quanto à estratégia da Jerónimo Martins dividem-se. Carlos Coelho, presidente da Ivity e especialista em construção e gestão de marcas, acredita que a campanha pode ser contraproducente. "Todas as acções que são sustentadas unicamente no preço não são muito valorizadas pelos consumidores por estranho que possa parecer. Enquanto seres humanos não acreditamos que uma coisa boa seja mais barata", resume. Os portugueses correram em massa para o Pingo Doce no 1º de Maio, mas Carlos Coelho sublinha que isso não quer dizer que confiem na marca do grupo Jerónimo Martins.

"O pilar da comunicação do Pingo Doce era dizer que trabalha todos os dias para manter os preços baixos, em contraponto com o seu maior concorrente, o Continente. Ao deixar cair uma bomba destas está, no fundo, a destruir o seu próprio território. Ou pelo menos a danificá-lo", sustenta, lembrando que o posicionamento do supermercado demorou 17 anos a construir. Além disso, oferecer 50% em todos os produtos "é um patamar difícil de igualar".

O que os concorrentes Continente (detido pela Sonae, dona do PÚBLICO), Auchan ou Intermarché vão fazer depois deste megadesconto é a pergunta que está na mente de muitos consumidores, cada vez mais ávidos por uma boa promoção. A crise mudou o comportamento dos portugueses e, na hora de gastar dinheiro, sentem-se cada vez mais atraídos pelos descontos. Como sugere um estudo recente da empresa de estudos de mercado Ipsos Apeme, nasceu o caçador de bons negócios numa sociedade cada vez mais discount.

"Para a concorrência vai ser difícil igualar e repetir uma campanha destas. Exigirá mais e melhor. Mas resposta de certeza haverá. Um dos quatro "r" das promoções é "responder"", diz o consultor António Rosseau, que foi director-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição durante 19 anos. O comércio "é espectáculo" e prevêem-se campanhas "cada vez mais espectaculares", originais e diferentes. "Comparo com a Lady Gaga, que tem componentes que o sector do comércio tem de começar a ter: originalidade, diferença, espectáculo", afirma António Rosseau, que elogia a "genialidade" da promoção, enquanto estratégia de marketing.

Do Pingo Doce podem esperar-se mais promoções agressivas. Acusada de vender abaixo do preço de custo - prática restritiva do comércio que estará a ser analisada pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) -, a cadeia de supermercados já prometeu outras acções comerciais este ano. Fonte oficial disse ao PÚBLICO que esta foi a primeira de várias campanhas, promovidas para "reforçar as oportunidades de preço para os consumidores portugueses e, assim, apoiá-los na gestão de um orçamento familiar cada vez mais pressionado".

O grupo Jerónimo Martins recusa ter vendido com prejuízo este 1º de Maio. O que se passou foi "uma oferta" para quem fizesse compras no valor mínimo de 100 euros e com limite de quantidade (12 de cada produto). A campanha, continua a mesma fonte, "foi gerada pelo investimento do Pingo Doce" e "de alguns dos seus parceiros de negócio". O valor em causa não foi divulgado. A empresa também não adiantou se se trata de um investimento que sai do orçamento de publicidade e marketing previsto para este ano.

As imagens de carrinhos a abarrotar de compras, discussões e confusões que levaram a PSP a intervir - 50 ocorrências registadas, segundo a Lusa - não impressionaram a empresa cotada, com lucros de 340 milhões de euros em 2011. O dono do Pingo Doce recusa as críticas de falta de planeamento e sublinha que a confusão instalada em algumas das lojas era "expectável", tendo em conta a concentração maciça de pessoas. Em média, os clientes compraram muito mais do que habitualmente, procurando os bens de primeira necessidade e os não perecíveis. "O balanço é positivo, considerando-se a acção como conseguida", diz fonte oficial.

Para a ministra da Agricultura, Assunção Cristas, a capacidade financeira mostrada pela Jerónimo Martins para conseguir reduzir margens de lucro é a prova de que a grande distribuição tem meios para suportar a nova taxa de segurança alimentar e sanitária, aprovada recentemente pelo Governo. Ouvida pelos deputados na Comissão de Agricultura, Assunção Cristas revelou que tem planos para introduzir novas leis que travem abusos e promoções inesperadas, feitas à custa da redução das margens de lucro dos fornecedores.

"Estamos com muita atenção a avaliar as situações e planeamos produzir legislação nessa matéria, nomeadamente no que tem a ver com alterações dos contratos que não estão escritas, a meio dos períodos de contratação, procurando repercutir situações de inesperadas promoções que depois vão parar ao próprio produtor", disse, ouvida pela TSF.

No parlamento, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes acusaram o dono do Pingo Doce de lançar uma campanha publicitária "ideológica" no Dia do Trabalhador. E anunciaram que vão requerer uma audição parlamentar do ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira. O PSD classificou as críticas de "ridículas". E o PS exigiu que a ASAE fizesse uma investigação rigorosa para apurar se os supermercados estão envolvidos em práticas de concorrência desleal e de prejuízo à produção nacional.

Se o caso for investigado pela ASAE, seguirá depois para a Autoridade da Concorrência (AdC), a quem compete decidir se houve ou não ilícito. Neste momento, a AdC já está a analisar 71 produtos suspeitos de terem sido vendidos pelo Continente abaixo do preço de custo, no âmbito de uma promoção em cartão. O volume de artigos é tal que o regulador não indica uma data específica para concluir a análise de todas as facturas e contratos e tomar uma decisão. A somar-se o processo do Pingo Doce, que tinha todos os seus produtos a metade do preço, o regulador não terá mãos a medir. A prática de venda com prejuízo é punida com coimas que no máximo chegam aos 14.963 euros, com um cúmulo jurídico até 30 mil euros.

Os funcionários da Jerónimo Martins que estiveram a trabalhar no 1º de Maio vão ter direito a fazer compras com 50% de desconto num dia à escolha entre 7 e 11 de Maio. Ganharam também uma folga adicional. Mas as consequências desta megacampanha preocupam o Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e Serviços (CESP).

"No feriado, as outras lojas da concorrência não venderam nada. Mobilizaram trabalhadores e foi um fiasco total. Isso levanta um problema sério", diz Manuel Guerreiro. O presidente do CESP explica que o Pingo Doce desferiu um golpe na concorrência que pode ser fatal: as empresas do comércio terão de responder com campanhas à altura, reduzindo margens de lucro, com consequências para o emprego gerado e trabalhadores.

No meio de toda a polémica, entre críticas e elogios, o sociólogo Manuel Villaverde Cabral não deixa de encontrar uma "ironia suprema" na campanha pensada pelo Pingo Doce. "Estas coisas não se podem fazer duas vezes. Foi fantástico do ponto de vista simbólico e metafórico. É o trabalhador versus consumidor, as duas qualidades estão na mesma pessoa. E hoje a segunda figura é mais importante", diz.

Notícia actualizada às 16h45, altera o título
Sugerir correcção
Comentar