Rui Morrison: voz da rádio em corpo de cinema

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Rui Morrison passou 25 anos na rádio, mas não tem saudades: “Foi um período muito bom da minha vida, mas teve um princípio e um fim”

Uma das carreiras mais discretas do cinema português atinge um novo patamar em “A Morte de Carlos Gardel”, de Solveig Nordlund. Mas Rui Morrison não gosta de se pôr “em bicos de pés” e prefere que seja o trabalho a falar por ele.

A primeira coisa que reconhecemos em Rui Morrison não é o rosto, não é a figura, não é a presença. É a voz. A mesma que ouvimos em dezenas de anúncios televisivos e, antes, durante um quarto de século, na rádio, nomeadamente num dos mais lendários programas de autor da época de ouro da Rádio Comercial, "Morrison Hotel".

Ainda hoje, 13 anos depois de deixar a rádio, ainda cria alguma estranheza colocar um rosto naquela voz; compreender que o Rui Morrison da rádio é o mesmo Rui Morrison que tem vindo a forjar uma discreta mas seguríssima carreira como actor. Dele disse João Botelho ser um dos raros actores portugueses (ao lado de Rogério Samora ou Virgílio Castelo) que corresponde a um "perfil" de homem maduro habitualmente pouco encontrado no nosso cinema. "Nunca pensei nisso," confessa Morrison, sem ilusões quanto ao que isso possa significar em termos de solicitações - "Hoje em dia não vejo nenhum actor em Portugal a ter quatro guiões de cinema para escolher ao mesmo tempo... Tenho um às vezes de dois em dois anos," diz rindo. "Mas nesse aspecto tenho tido sorte." E o facto de ter "caído de pára-quedas" no cinema, vindo da rádio e sem ter feito o percurso habitual dos veteranos, já está hoje "completamente ultrapassado".

O seu trajecto no cinema, depois de algumas "perninhas" pontuais, apenas "descolou" a sério em 1999 com "Mal", de Alberto Seixas Santos, que foi também o seu primeiro papel "quase como protagonista". De então para cá, Morrison tem sido uma presença constante, mas só agora está a chegar aos papéis principais, de "leading man" - "mais nos últimos três, quatro anos" -, depois de uma longa série de papéis secundários ou de composição. E essa progressão agrada-lhe porque permite-lhe sentir "outra capacidade para responder: "Estás numa ligação tão directa ao longo do filme todo com o realizador que isso te permite levantar muito mais questões."

Não é, aliás, por acaso que é um papel principal que Morrison elege como "charneira" destes 13 anos: o momento que marcou a descoberta de uma maneira de trabalhar que corresponde àquilo que quer, que lhe deu o sentimento interior meu de que fez "do modo que gostava de fazer". Não é, ainda, "A Morte de Carlos Gardel": "é cedo" para isso. "Nas primeiras vezes que vejo o filme, é muito complicado desligar-me da personagem - ainda está muito próxima, e isso impede-me de ver o conjunto com nitidez e distanciamento. Isso só vai acontecer daqui a seis, sete meses."

Morrison fala, sim, de "Os Sorrisos do Destino", de Fernando Lopes, trabalho que adorou fazer e que foi a terceira das quatro colaborações entre o actor e o realizador. O autor de "Belarmino" e "O Delfim" forma, com Solveig Nordlund e João Botelho, o "trio" de cineastas com quem Morrison criou uma relação de trabalho mais regular, que passa também por uma grande cumplicidade pessoal. Com Nordlund, "A Morte de Carlos Gardel" é o terceiro filme, depois de "Aparelho Voador a Baixa Altitude" e da curta "O Espelho Lento"; com Botelho rodou por seis vezes, mais recentemente em "A Corte do Norte" e "Filme do Desassossego".

São universos distintos nos quais o actor diz sentir-se muito à vontade. "Às vezes acontece as pessoas pura e simplesmente entenderem-se sem grande esforço, e isso resulta em parcerias boas. E isso acontece com qualquer um deles. Conheço muito bem os cinemas deles, e gosto muito - por isso, não é difícil entrar nesses universos. O João está muito atento ao lado estético; a Solveig trabalha muito com os actores, mas é mais seca, muito escandinava, fria mas com emoção. E o Fernando é ainda outra coisa, alguém que sabe muito bem o que quer mas que também espera que lhe tragam coisas... Um actor, no fundo, adapta-se, e é muito engraçado passar com alguma facilidade de um para outro. Este ano aconteceu isso: acabei o filme da Solveig e 15 dias depois estava a filmar com o Fernando" ("Em Câmara Lenta", o novo filme de Lopes, está actualmente em pós-produção).

Esta semana, contudo, "A Morte de Carlos Gardel" é o centro das atenções. Nesta adaptação ao cinema do romance de António Lobo Antunes, Morrison interpreta Álvaro, o pai em desespero e negação de um toxicodependente em estado crítico no hospital. É uma personagem em ouro que "já estava muito bem definida [no guião] e no livro": "A Solveig é extraordinária a adaptar literatura, vai ao osso da personagem." Mas cabe ao actor revelar a humanidade de uma personagem "fria", um realizador de cinema que nunca teve a carreira (nem a vida) que sonhou, "que falhou no filho, na profissão, nas mulheres": "A sua única paixão foi de facto o filho, e nunca o conseguiu conquistar. E ele está ali um bocado a fazer o balanço da sua vida."

Uma vida que se perdeu entre as convulsões do Portugal pré- e pós-25 de Abril - período que também Morrison, 63 anos, atravessou, e que acabou forçosamente por alimentar a sua interpretação. "A experiência que tenho traz automaticamente uma série de coisas, uma memória vivencial, das pessoas com quem vivi e com quem ainda convivo... Isso vem tudo ao de cima, e depois vai-se filtrando. Nunca senti essas memórias afectivas como um peso; são antes um lastro com que trabalhas, e a partir daí focas-te na personagem, nas memórias e nos sentimentos dela".

Álvaro reflecte a frustração que Morrison admite sentir em gente da sua geração: "O filme fala de vidas perdidas, falhadas, de utopias que não chegaram a sê-lo e passaram a ser frustrações... Quando temos 20 ou 25 anos, o que esperamos do mundo nunca é utópico, tudo é possível. A utopia é uma análise posterior."

Mas não se confunda a personagem com o actor. Por exemplo: ao contrário de Álvaro, para quem o lendário cantor argentino Carlos Gardel é um totem, o antigo radialista não tem nenhum interesse em "voltar ao passado". "Saudades da rádio? Não tenho! Saudade implica uma certa nostalgia, a saudade de me apetecer voltar à situação... Não é esse o caso. Tenho óptimas memórias e foi um período muito bom da minha vida, mas teve um princípio e um fim."

Ao longo de quase uma hora de conversa descontraída, no luminoso Jardim de Inverno do teatro São Luiz, Rui Morrison confirma a sua "imagem" - ou ausência dela? - como alguém discreto, seguro, reservado. É, aliás, por isso que o processo de promoção lhe causa algum desconforto: "Gosto muito de conversar, e gosto muito de conversar sobre cinema", diz, mas a estrutura formal da entrevista deixa-o pouco à vontade. "Desde sempre, mesmo na rádio, nunca procurei os holofotes. Sempre achei que o trabalho das pessoas é que fala por elas. Não gosto das atitudes de quem se põe em bicos de pés à procura dos holofotes, sou incapaz desse tipo de coisas. Estou aqui, as pessoas sabem que estou cá, sabem o que sou capaz de fazer - ou não. O meu trabalho é aquele, está no écrã, não tenho mais nada a dizer do que aquilo que está ali visível."

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