Manter golden share na Galp pode não violar o direito comunitário

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Parte da golden share da Galp vai ao encontro das conclusões do Tribunal de Justiça no caso Distrigas Joana Camões/PÚBLICO

Nuno Cunha Rodrigues, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, lembra que a Comissão Europeia permite quatro excepções à proibição dos direitos especiais do Estado em grandes empresas.

O autor do livro "Golden shares - As empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário" admite que o Governo pode estar a ser mais papista que o papa nesta questão.

Se Portugal não tivesse pedido auxílio financeiro, teria havido tanta rapidez para se pôr fim aos direitos especiais do Estado?

Não de forma tão célere. No caso da PT, em que Portugal já foi condenado há mais de um ano pelo Tribunal de Justiça, não se tinha feito nada até agora. No caso da EDP e da Galp, já havia também um processo de pré-contencioso que tinha seguido para o Tribunal de Justiça, que se estava a arrastar há cerca de quatro ou cinco anos. O que aliás é típico dos estados europeus nestas situações: tentar arrastar os processos o mais possível, porque enquanto demoram o poder de influência do Estado vai-se perpetuando nessas empresas.

Quais são as excepções que a Comissão Europeia admite?

No caso da PT, o Tribunal de Justiça condenou por considerar que a detenção degolden shares pelo Estado limita a liberdade de circulação de capitais. Acontece que esta e as outras liberdades de circulação (pessoas, bens e serviços) admitem quatro excepções. São motivos de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública e as chamadas razões imperiosas de interesse geral. Por exemplo, no caso da Bélgica, da Distrigas, considerou-se que o aprovisionamento de gás em caso de emergência constituía um motivo de segurança nacional e uma razão imperiosa de interesse geral que legitimava a detenção de golden shares, por ser uma excepção à livre circulação de capitais.

Mas a própria Galp, no âmbito da golden share, refere a necessidade de salvaguardar o abastecimento do Estado.

Acho que nesse caso, se reduzíssemos um pouco o âmbito da golden share que o Estado tem, isso podia ser compatível com o direito comunitário.

Ao abdicar da golden share na Galp, o Governo está a ser mais papista do que o papa?

Podemos concluir dessa forma, porque há uma parte da goldenshare da Galp que vai ao encontro das conclusões do Tribunal de Justiça no caso da Distrigas. Nomeadamente, quando se refere que a golden share diz respeito a deliberações que possam pôr em causa a segurança do abastecimento do país de petróleo, gás e electricidade ou produtos derivados dos mesmos.

Há outras excepções conhecidas, além do caso belga?

O único caso que até hoje o Tribunal de Justiça admitiu foi esse.

No entanto, há outras empresas, como uma de materiais nucleares na Bélgica ou a Thales francesa, em que os estados têm uma golden share e não houve referências da Comissão Europeia.

No caso dos materiais nucleares, pode ser por motivos de segurança pública. Os governos procuram encaixar sempre as golden shares em razões de ordem pública, segurança ou saúde públicas, ou razões imperiosas de interesse geral. Normalmente, associam-lhes situações de monopólios naturais relevantes para a economia nacional, como a distribuição de gás e petróleo ou a energia nuclear. E aí a Comissão Europeia é mais sensível à existência de golden shares. Já no sector das telecomunicações, que é muito regulado, a Comissão Europeia diz que isso não faz sentido.

Na energia, faz sentido haver hoje golden shares?

Penso que não. Outra questão é a dimensão dos sectores empresariais do Estado e as empresas que o Estado pode ter. Há um artigo expressamente previsto no tratado, o artigo 245.º, que afirmou o princípio da neutralidade relativamente à forma de propriedade dos estados-membros. Para a União Europeia, é irrelevante que o Estado tenha a CGD ou 10 bancos. Na Alemanha, 50 por cento dos bancos são do Estado, de forma directa ou indirecta. É irrelevante que o Estado tenha 25 por cento da EDP. O que é relevante, em primeiro lugar, é a forma como estas empresas são financiadas, saber se há auxílios do Estado.

Então, por que é que existe esta pressão para a privatização em Portugal, acentuada pela troika?

A troika tem uma perspectiva típica do Fundo Monetário Internacional (FMI), do chamado Consenso de Washington, de 1989: sempre que se assiste a uma intervenção do FMI, assiste-se depois a uma reestruturação das economias numa perspectiva profundamente liberal, que dá lugar à intervenção do Fundo.

No caso da EDP, a limitação dos direitos de voto de accionistas que não estejam ligados ao Estado pode ser considerada uma golden share?

Aí não estamos a falar de goldenshares, mas da possibilidade de em qualquer empresa ser definido entre accionistas um tecto máximo, acima do qual não são considerados direitos de voto. Na EDP, o problema é que foram criados de forma legislativa direitos especiais a favor do Estado, que têm de ser expurgados. E sem estas golden shares, não significa que o Estado fique desprovido de instrumentos para, se quiser, condicionar a vida das empresas. Agora, ao fazê-lo, vai ter de ser por acordo com os accionistas.

De que forma?

Por acordos parassociais, de blindagem dos estatutos por via da determinação de um limite à atribuição de direitos de voto... Não por acto legislativo, mas com o Estado como um accionista entre outros.

No caso da Galp, onde o Estado só mantém um por cento através da Caixa, são lícitos os direitos que tem através do acordo parassocial?

Se os accionistas privados estiveram de acordo em assinar aquele acordo parassocial, tudo bem.

A influência que o Estado tinha enquanto estrutura empresarial aglutinadora de vontades vai perder-se agora?

Acho que não. O Estado irá sempre condicionar a vida das grandes empresas. E, desde 2008, com a crise financeira, os estados procuram isso, não explicitamente, mas através da sua actuação.

Nota-se alguma diferença de tratamento, dependendo da força política e económica dos estados-membros?

Hoje em dia isso é uma questão muito discutida. Acho que a própria União Europeia não sabe para onde vai.

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