Os iraquianos têm um rei chamado Moqtada

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Moqtada tem vivido no Irão, mas estará a planear mudar-se para o Líbano Ali Jasim/Reuters

Manda no Iraque como mais ninguém manda e pode querer mais do que isso. Por exemplo, ser outro Nasrallah. Já enfrentou os Estados Unidos, só nunca se meteu com Israel.

Lembram-se dele? É bom que sim. Ele esteve sempre presente, mesmo que ausente do Iraque ninguém sabe há quanto tempo. Ele é aquele rapaz com ar de mau e turbante preto que apareceu aos gritos de "Morte à América" em 2003, ao mesmo tempo que rebaptizava os subúrbios xiitas do Iraque, que deixaram de se chamar Saddam City e passaram a chamar-se Sadr City. Em 2004, declarou guerra aos Estados Unidos, mas também aos espanhóis, polacos e portugueses. Depois, muito depois, declarou uma trégua e tornou-se num peso político incontornável.

Foi Moqtada al-Sadr, o tal rapaz, que entretanto já deve ter 40 anos - os perfis publicados diziam que tinha 33 quando os EUA invadiram o Iraque -, quem decidiu, em 2005, que o primeiro-ministro do Iraque seria Nouri al-Maliki. Surpresa: foi Moqtada, em Agosto deste ano, cinco meses depois das eleições de Março, quem decidiu que Maliki não vai continuar a ser primeiro-ministro.

Moqtada tem poder para isto e para muito mais. Ambição também. Os norte-americanos podiam não o saber em 2003, talvez tenham ou não percebido isso em 2004 e em 2005, mas em 2010 não têm dúvidas. Moqtada é tão fazedor de reis que a revista "Foreign Policy" escolheu para título de um artigo que lhe dedicou a semana passada "O Rei do Iraque", assim mesmo, rei com maiúscula.

Para quem não se lembra de Moqtada - ou nunca soube quem é -, lembremos que ele é o homem que aproveitou a herança que carrega no nome Sadr para criar, nada mais nada menos, do que o "único movimento de massas" iraquiano, assim disse ao PÚBLICO, em Agosto de 2004, Mahan Abedin, da Jamestown Foundation e colunista do "Daily Star" de Beirute, especialista em política iraniana e xiismo.

Moqtada é filho de Muhammad Sadiq al-Sadr, morto em 1999 às ordens de Saddam Hussein. O pai Sadr era familiar do lendário sábio Muhammad Baqir al-Sadr, morto pelo Partido Baas em 1980. "É muito carismático" e herdou a popularidade do pai, descrevia há seis anos Mahan Abedin. Com esta herança, entrou pelos subúrbios pobres dos xiitas, a seita muçulmana da maioria dos árabes iraquianos, discriminados por Saddam, ao mesmo tempo que os norte-americanos chegavam a Bagdad. Deu-lhes escolas, esmolas e armas e nascia então a o Exército de Mahdi.

Moqtada sabe tudo sobre escolha de palavras. Os xiitas são os seguidores de Ali e têm muitos imãs especiais. Imã é, para todos os muçulmanos, aquele que dirige as orações, "o que está diante". Mahdi é o imã do tempo; vivo, mas oculto, regressará para impor finalmente um reinado de paz, justiça e verdade. Sadr gosta de se comparar a Hussein, filho de Ali, feito mártir como o pai, numa batalha perdida em Kerbala.

Escreve a "Foreign Policy": "A linguagem que Sadr usa quando discute a presença dos EUA no Iraque - resistência, ocupação, martírio - podia ser retirada de um discurso do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah." O xeque Nasrallah, do movimento xiita Hezbollah, é só aquele senhor que em 2006 enfrentou Israel e no fim declarou vitória, mesmo com Beirute de novo arrasada pelas bombas.

Mahdi e Hezbollah

Tal como o Hezbollah do libanês Nasrallah, o Mahdi, de Sadr, que entretanto desapareceu e se chama a Brigada do Dia Prometido, de acordo com a agência de notícias UPI, é grupo armado e movimento político. Nas eleições de 2005, Sadr elegeu 30 deputados; nas de Março 40. Isto estando há anos no Irão, onde se diz que estuda para subir na hierarquia religiosa xiita e aumentar a sua legitimidade entre a comunidade de onde emergem os seus seguidores.

E foi assim que em Julho Sadr decidiu que Maliki não será primeiro-ministro durante mais cinco anos. E que, já em Agosto, viajou até Damasco para se encontrar com políticos iraquianos, incluindo Iyad Allawi, o xiita que se diz secular e que se candidatou com uma lista que reúne membros de várias comunidades religiosas e étnicas. Allawi ganhou as eleições, conseguindo mais dois deputados do que Maliki, mas não tem votos para governar sozinho. Sadr e Allawi terão rido nesse encontro - como nota a Foreign Policy, "as fotos e o vídeo dessa reunião são alguns dos únicos exemplos públicos de Sadr a sorrir" -, mas também não é certo que Sadr tenha decidido que será Allawi o próximo primeiro-ministro.

Sadr sorri pouco, é verdade. Mas também é verdade que hoje, espalhadas pelo Sul do Iraque, já há imagens suas sem aquela raiva dos primeiros anos. Tal como há cartazes em que ele, considerado um traidor pela Hawza, a instituição xiita iraquiana oficial, liderada pelo grande ayatollah Ali Sistani, partidária da separação dos poderes espirituais e temporais, já aparece ao lado de ayatollahs verdadeiros, como ele ainda não é. De certa forma, já toda a gente se rendeu a Moqtada. Mas ele pode querer mais.

Responsáveis em Beirute e Teerão dizem à UPI que o líder religioso e político iraquiano está prestes a mudar-se do Irão para o Líbano. "Sadr rejeita todas as pressões e propostas feitas por responsáveis iranianos e incentivos materiais para que ele apoie a nomeação de Maliki", disse uma fonte à UPI. O regresso de Sadr ao Iraque nunca acontecerá enquanto Maliki estiver no poder.

Mas o que quer afinal Moqtada, feroz nacionalista, defensor dos pobres e oprimidos xiitas? "O que Sadr quer é o poder em si mesmo", escreve a "Foreign Policy". "As suas ambições não cobrem só a agenda doméstica iraquiana. As viagens de alto perfil à Jordânia, à Turquia, ao Líbano, à Arábia Saudita e a outros lugares indicam que quer ser visto como um jogador regional proeminente. Gostaria que o Mahdi fosse membro do chamado "eixo de resistência" formado pelo Hezbollah e pelo Hamas, com nomes feitos no confronto aos EUA e a Israel."

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