Mathias Énard e o mundo depois de Apollinaire

Zona, o romance-sensação da rentrée francesa em 2008, acaba de ser traduzido em Portugal. É a encenação da História do século XX como tragédia, durante uma viagem a bordo de um comboio nocturno. O fim de um mundo, numa longa frase de 400 e muitas páginas.

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No Verão de 1991, Mathias Énard (n. 1972) partiu para o Líbano para fazer uma reportagem sobre a Cruz Vermelha libanesa. Foi o seu primeiro contacto com o mundo árabe e com as histórias da guerra contadas pelos que nela combateram. Énard mudara-se para Paris, algum tempo antes, com a intenção de estudar arte contemporânea, mas depressa trocara esses estudos pelos das línguas árabe e persa. Conseguiu várias bolsas de estudo que o levaram a estadas longas em Teerão, no Cairo e em Veneza. Viveu ainda cerca de três anos na Síria, com múltiplas viagens a Beirute e a outras cidades das margens do Mediterrâneo. Em 2003, publicou o seu primeiro romance, “La Perfection du Tir”, a história de um “sniper”. Mas foi em 2008 que surpreendeu críticos e leitores com a ambiciosa inventividade de “Zona”, que por cá acaba de ser publicado.

No romance-sensação de Mathias Énard, a História do século XX é encenada como espectáculo trágico, numa longa récita, em jeito de epopeia contemporânea, de uma frase de 400 e muitas páginas, interrompida apenas três vezes pela história de dois amantes palestino-libaneses. É uma História oral, que se conta durante a viagem de um comboio nocturno, entre Milão e Roma. O viajante, a caminho do “fim do mundo” como um Ulisses moderno a caminho da redenção, é um agente dos serviços secretos naquela que será a sua última missão. Depois de ter combatido na ex-Jugoslávia, Francis, o narrador, trabalhou para os serviços secretos franceses na área conhecida como “Zona” (o Médio-Oriente, da Argélia ao Egipto, passando pelo Líbano, a Síria e Israel). Quando Mathias Énard aceitou falar com o Ípsilon, estava em mais uma das viagens pelo mundo árabe, desta vez entre Tunis e Beirute.

Como nasceu esta sua paixão pelo Mediterrâneo?

Como disse o historiador Fernand Braudel, “é talvez por ser um homem do Norte que eu amo apaixonadamente o Mediterrâneo”. Quem sabe se é porque eu venho dos lados do Atlântico que me apaixonei pelo Mediterrâneo. Ou talvez porque viajei tanto e durante tantos anos pelas suas margens, aprendendo línguas, conhecendo gente. É possível. O que me apaixona neste pequeno mar é a sua diversidade, a multiplicidade de paisagens, culturas, línguas, livros e histórias de que ele é feito. O Mediterrâneo é impossível de resumir, não tem fundo.

A História europeia e do Médio-Oriente tem uma grande importância em “Zona”...

Na ficção não me interessa a História como História. O que quis escrever, o meu objecto, por assim dizer, foram os homens no meio dela: o individual, que é o romance, frente ao colectivo, que é a História. “Zona” é uma rede de histórias individuais, uma tentativa de pôr vidas reais atrás dos muitíssimos nomes de mortos que povoam os cemitérios do Mediterrâneo. Sejam eles famosos, esquecidos ou absolutamente desconhecidos, tiveram uma vida, uma vida de relação com o mundo, de relação com o resto das pessoas. Todos estes fios se cruzam no romance, se correspondem; levam-nos de um lado ao outro daquele mar.

Uma espécie de dever de memória por parte dos vivos?

Não creio que exista um dever de memória. A memória deve ser um relato vivo, ou então perde-se numa lista de nomes gravados numa estela de mármore. Os escritores, e também as pessoas em geral, estão aqui para contar uma história, mantendo-a assim viva.

Escrever “Zona” como uma única frase foi uma escolha estética ou uma tentativa de escrever uma récita épica contemporânea?

Não foi exactamente uma decisão estética. Mas, tal como o comboio que pára só um par de vezes, a minha frase pára só três vezes, é interrompida. Foi uma forma de tornar esta viagem real, de a passar para a escrita. Obviamente, que isto também me permite manter uma dimensão épica. Interessava-me o desafio de voltar ao “epos” grego, ao verso da “Ilíada”. Mas também podemos dizer, falando agora de música, que há no livro algo “wagneriano": a música não pára; tirando um par de interlúdios, é contínua, e isso permitiu-me desenvolver temas, “leitmotivs”, dar cores e tensões distintas ao longo da narração.

Parece ter sido um livro complicado de escrever, não apenas pela estrutura mas pelo material necessário...

Toda a estrutura estava montada quando comecei a escrever. Passei oito anos a juntar as histórias que fazem o “Zona”. Tinha milhares de notas, gravações, personagens, etc. Ordenei tudo escrevendo em “post-its” numa parede. E de repente tive todo o livro diante de mim. Havia cores por épocas e por regiões. E eu podia ir movendo os episódios de um lugar para outro sem quaisquer problemas.

Mas houve todo um trabalho de pesquisa de fontes...

Na sua grande maioria, as histórias de “Zona” são reais. E com “real” quero dizer que alguém mas contou. Aconteceram, às vezes em encontros fortuitos, ou com amigos, ou com gente que ia conhecendo por aqui e por ali. Mas outras tive de as procurar, como faria um jornalista, em testemunhos de quem por lá andou e estava disposto a contá-las. Por exemplo, o obscuro personagem Eduardo Rosza: procurei-o muito, até um dia dar com ele, e acreditei nas suas memórias de guerra. E, já que falo nele, soube que morreu no ano passado, abatido a tiro na Bolívia quando preparava, pelo menos essa é a versão oficial da polícia, um atentado contra o presidente Evo Morales. Infelizmente, “Zona” não se fica apenas pela ficção.

Tem uma visão apocalíptica da História do século XX?

Não nos esqueçamos de que o Apocalipse é um livro, uma revelação. Oxalá o mundo estivesse à beira da revelação. Não sou religioso, mas o fim do mundo é um tema que me interessa. No romance trato do fim do nosso mundo, do fim de um mundo. Como alguém que tenta mudar o rumo da sua vida, acabá-la, passar a outra.

De onde lhe vem todo o conhecimento bélico que atravessa o livro?

A minha experiência com armas é mais ou menos a de uma criança que dispara de vez em quando nas férias, no campo. Mas conheço as armas de fogo. Durante anos estiveram à minha volta. No Líbano aprendi a destinguir o som de uma kalashnikov, o calibre de um morteiro. Vi passar muitos tipos de tanques, de canhões, na Jugoslávia. Mas a minha experiência é passiva.

Porque é que a sua narração é interrompida para intercalar uma história que aparentemente nada tem a ver com a que está a contar?

Queria contar a história de Intissar, uma mulher combatente. Também me interessava o ambiente triste do horrível Verão de 82 em Beirute, mas o meu narrador, o Francis, não o podia incluir na sua vida. Por isso, inventei o livro que ele lê no comboio. Era também uma mudança de ritmo, de estilo, que me era útil para que o leitor não se habituasse demasiado à voz de Francis, que está sempre surpreendido por alguma coisa. A história de Intissar e Marwan é terrível, bela, mítica.

O poema “Zone”, de Apollinaire, parece ter-lhe servido de matriz para o romance...

Desde o começo que o “Zone” foi uma das referências permanentes na escrita do romance. Muitos temas são comuns: a modernidade, o Cristianismo, a viagem, a criação, e inclusivamente a decapitação. Poderia dizer que o meu romance é uma espécie de “amplificação” do poema, uma forma de dialogar com ele, dizendo-lhe: “Olha, ó Guillaume [Apollinaire], tu morreste em 1918, mas olha o que é que se passou depois”.

Por isso “encheu” o romance de escritores? Para também dialogar com eles ou com a sua obra?

O que me interessou nos escritores que aparecem em “Zona” foi mais o seu corpo físico, mais a sua vida, do que a sua obra. De que maneira o seu corpo, o seu ser na Terra, se relaciona com outros corpos, com outros acontecimentos? Todos os escritores que aparecem no livro partilham duas coisas: o Mediterrâneo e a culpa, ou a humilhação, como motor da sua obra. [Ezra] Pound é culpado de antisemitismo e de fascismo, [William] Burroughs matou a sua própria mulher, [Malcom] Lowry tentou fazê-lo, Cervantes foi ferido e humilhado várias vezes, [Mohamed] Choukri [escritor marroquino, autor da obra-prima “O Pão Nu”, ainda inédita em português] também. Nestas personagens, o que interessa ao narrador é que elas conseguiram transformar tudo isto - culpa, humilhação, violência - em arte, e ele não o sabe fazer.

Quais foram as suas influências literárias?

Sou um grande leitor, leio tudo. Não posso estar numa carruagem do metro sem tentar ler o jornal do meu vizinho. Leio os folhetos da publicidade, os cartazes, todos os livros que me caem nas mãos, revistas antigas. Não consigo arrumar a minha biblioteca porque de cada vez que pego num livro fico, sem querer, a lê-lo. Mas dentro de todas estas influências há os grandes choques, deslumbramentos. Proust e Céline foram-no, Pessoa também. Carver. Lowry. Tsirkas. São impossíveis de contar.

E Roberto Bolaño? Parecem ter algo em comum na maneira como tratam a ideia de “mal”...

Tenho uma relação muito especial com Roberto Bolaño. Era um escritor imenso. Tem 3 livros extraordinários: “Nocturno do Chile”, “Estrela Distante” e “A Literatura Nazi na América”. E duas obras-primas: “Os Detectives Selvagens” e “2666”. Vi-o pela primeira vez, em público, em Barcelona, pouco antes da sua morte. Era Janeiro de 2003, uns meses depois saía o meu primeiro romance, e ele morreu em Julho, antes de eu lhe mandar o livro. Tenho duas fotografias dele no meu escritório. Não sei o que divido com ele, só sei que está sempre ao meu lado, como alguém muito próximo, um familiar desaparecido, um irmão que nunca cheguei a conhecer.

Vai haver um “Zona II"?

Está quase acabado. Trata-se, por assim dizer de uma “anti-Zona”, como há a anti-simetria nas matemáticas. É um livro breve, de frases curtas. Explora um episódio da vida de Miguel Ângelo. E no fundo fala do mesmo que “Zona”, do peso da história e da violência na vida, das relações entre o Oriente e o Ocidente.

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