Vamos correr em direcção a Brillante Mendoza

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A partir do dia 20, a Zero em Comportamento mostra na Culturgest, em Lisboa, a obra do cineasta filipino. Uma retrospectiva no momento certo em que o mundo da cinefilia corre em direcção a Brillante Mendoza. Brutal e lírico

Dizer que um filme foi "o pior" de um festival não dá a medida de qualquer abalo. Mas quando se traz à memória o ano de 2003, e um filme chamado "The Brown Bunny", de Vincent Gallo, para comparar e afirmar "isto é pior do que 'The Brown Bunny'"... fica marcada a fasquia da - suposta - infâmia por quem se sentiu ultrajado.

Foi assim: 2009, competição de Cannes, o filme "Kinatay", de Brillante Mendoza. Meia hora depois do genérico está o espectador às aranhas na noite escura. Nem deu por isso, mas torna-se irreversível. Depois de sequências diurnas, frenesim dos mercados de Manila, rituais de um casamento, o filme fecha-se num carro. Numa pestilenta letargia, gritos de tortura no som.

Vai ser noite até ao fim, quando o dia volta a nascer. Mas para a personagem principal de "Kinatay", que investe no futuro preparando a admissão à polícia, acabadinho de casar e tudo, nada vai ser igual. Pior: tudo fica na mesma depois daquela noite em que uma prostituta, Madonna, começou a ser violentada no interior do carro e acabou desmembrada, por fases, numa casa na estrada. Para este jovem candidato às forças da lei que se desenrasca cruzando o submundo (íamos escrever: para este "não tão inocente" candidato a polícia... mas a inocência, ou a perda dela, não é para aqui chamada) a manhã é mesmo outro dia.

Mas por esta altura - e voltamos à memória daquele dia em Cannes - já a indignação era irreversível entre os que viam "Kinatay". Por causa do escuro, por estarmos tanto tempo dentro de um carro sem ver nada, e, afinal, por vermos, por sermos cúmplices de um crime, ficando a assistir, passivamente, como o candidato a polícia. Apareceu o veredicto, a tal coisa do "pior" do festival (o que diz mais sobre quem adjectiva...), e a evocação dos dias do outro "road movie", aquele do sexo oral entre Vincent Gallo e Chloe Sevigny, e de outra rejeição em Cannes. Mas veio também o prémio de realização a Brillante Mendoza. Que, dessa forma, atingia o cume da sua fama infame de manipulador do "exploitation", a querer ir sempre até ao fim das coisas, mostrando tudo (um ano antes, "Seviços" e a sua hora de ponta num cinema delapidado tornado cenário para corpos e mercadoria, já fizera ranger dentes...). E, simultaneamente, subia até um patamar visível de reconhecimento como "autor" - recebeu uma carta de Quentin Tarantino, rival na competição, a dizer-lhe que percebia bem o que ele queria fazer. (Quanto a Vincent Gallo, o "escândalo" de Cannes fez a coisa sumir-se num sussurro)

O que deve ter irritado ainda mais os críticos de Mendoza: não era possível, a partir de então, ignorar a irresistível ascensão de Brillante, filipino, nove filmes em quatro anos, um realizador que começou relativamente tarde, aos 45 - em 2005, data da sua primeira longa, "Massagista" -, mas que não tem perdido tempo.
"Não quero chocar as pessoas. Quero mostrar o que acontece realmente no meu país. Não me quero censurar. Estaria a fazer isso se escolhesse o que mostrar e o que não mostrar", diz-nos Mendoza, ao telefone de Manila, comentando a sua fama de infame. "O que me preocupa é saber como encenar as sequências. Não quero dar lições de moral a ninguém, isso é com as pessoas".

Mendoza chega a Portugal - ele e os seus filmes - num momento em que o mundo da cinefilia corre em direcção à sua obra - aliás, corre em direcção ao novo cinema filipino. Retrospectiva, organizada pela Zero em Comportamento, na Culturgest, em Lisboa, entre 20 e 23: "Lola", 2009 (dia 20, 21h30), "Massagista", 2005 (21, 18h30), "Manoro"/ "The Teacher", 2006 (21, 21h30), "Kaleldo", 2006 (22, 18h30), "John John", 2007 (22, 21h30), "Tirador", 2007 (23, 16h), "Serviços", 2008 (23, 18h30) - este disponível em Portugal em DVD - e "Kinatay", 2009 (23, 21h30). Quase integral porque há um filme, um erótico "gay", "Pantasia" (2007), que Mendoza não disponibiliza, não se reconhece nele (assinou como "Dante Mendoza"). E haverá uma "masterclass", 6ª, 22, às 15h (entrada gratuita).

Em construção

Vendo os filmes todos de Mendoza não se pode deixar de experimentar um efeito de agigantamento: há um (grande) cineasta em construção.
Veio da publicidade, onde era "production designer". Onde, diz, ganhava bem e era feliz. Um desafio puxou-o para o cinema: "Massagista" começou como encomenda para um filme para o circuito "gay" de vídeo; o súbito realizador fez uma contraproposta, pesquisou nas saunas, e teve o Leopardo de Ouro em Locarno. É a história de um rapaz (Coco Martin, que a partir daqui habitaria a obra do realizador) dividido entre o apelo familiar e o trabalho como massagista e prostituto numa sauna. Vendo o que veio a seguir, quer essa estreia quer a saga familiar "Kaleldo" são ainda algo afectados, a quererem ser tomados por outra coisa, para além do filme erótico e da telenovela - sem verdadeiramente o serem.

É com "Manoro"/ "The Teacher" que Mendoza, "self-made" cineasta sem escola de cinema (o curso é de publicidade), afirma o seu território na diluição de fronteiras entre ficção e documentário - para o que terá contribuido a descoberta, por exemplo, do neo-realismo italiano. E é com "Manoro" que o cinema de Mendoza começa a caminhar - literalmente: as personagens não páram de andar por aqui.
"A minha estética é a do tempo real, na fronteira com o documentário neo-realista. Misturo o documentário e a ficção. Mas é ficção. Embora parta sempre de histórias reais, há uma narrativa. Quero captar a realidade. Mas a verdade do cinema também".

O resultado ainda decorre, porque esta é uma obra que se vê, e se sente, como estando em expansão e a ganhar terreno. Mas já tem os seus monumentos: "John John", nos meandros do mercado da adopção nas Filipinas e das dependências emocionais e económicas que engendra; "Kinatay"; "Lola", trajectória de cruzamento entre duas avós ("lola" em filipino), uma para reconhecer o cadáver do neto morto num roubo, outra para ir ao encontro do neto, preso por ser suspeito do assassínio.

São pedaços em bruto da vida quotidiana de um país, com fio de melodrama dentro, e gente em condição precária. E sempre em movimento. Mas sem sair do mesmo lugar, quer seja o interior de um antigo cinema transformado em "bas-fond" da pornografia ("Serviços"), quer sejam os exteriores dos bairros pobres de Manila. Uma obra em expansão: traça uma odisseia por um espaço; as pessoas caminham, caminham no cinema de Mendoza...
"É consciente. É para ser assim. Quero mostrar o meio em que as personagens vivem. A forma como elas interagem também com os lugares. E é uma forma de mostrar que as pessoas nas Filipinas estão enjauladas".

Veja-se o final de "Lola", depois de as duas avós terem chegado a um acordo, com troca de dinheiro, depois de a queixa ser retirada, de o crime deixar de ser punido, e de ficar um morto (e a moral nem sequer ser lembrada): personagens à saída do tribunal, a câmara faz uma panorâmica e um cortejo oficial, de dignitários políticos, atravessa o plano em carros negros - não sabemos dizer se é um "statement" ou se é de uma subtileza infinita.
"Não tenho problemas com os 'statements'. Há cenas assim nos meus filmes, que mostram como as personagens andam às voltas e não chegam a lado nenhum. A cena final, no táxi, em 'Kinatay'. Essa de 'Lola'... As pessoas não têm escolha na sociedade filipina, é isso que quero dizer. Porque, vivendo no mais baixo escalão da dignidade, são obrigadas a resolverem os problemas à sua maneira e a continuarem com a sua vida. Há um governo. Mas não toma conta das pessoas. E a questão é que a maior parte dos filipinos aceita isso. Já não se queixa. Só se preocupa com a sua vida, independentemente dos outros".

"Lola", então: é uma das emoções cinematográficas da década que termina. Apenas quatro meses após a gélida recepção a "Kinatay" em Cannes, Mendoza apresentava novo filme no Festival de Veneza. Foi, para alguns, uma iluminação: afinal, o homem com a reputação de "Kinatay"... E foi, para alguns, "o melhor" desse festival.
Essa diluição do ficcional no documentário, essa verdade das coisas que se quer confirmar na verdade do cinema, contrói momentos de paroxismo lírico: a odisseia por uma Manila transformada em Veneza da Ásia pelas chuvas, as sequências iniciais em que uma avó se debate com o vento, a chuva, o guarda-chuva e a chama de uma vela (delírio nosso, pode ser, mas o fantasma de Lilian Gish e de "O Vento", de Victor Sjöström, de 1928, paira por aqui).

Chuva de cinema, de ficção, ou chuva real, de documentário? "As duas", diz-nos Mendoza, e suspeitávamos disso. "Filmámos numa parte de Manila, as cenas iniciais, na igreja, que era bastante sombria, porque estávamos na época das chuvas. Para outras cenas tivemos que fabricar nós a chuva". E há essa avó, uma veterana actriz que Mendoza transforma em figura que o cinema apanhou por ali.
"Faço sempre uma mistura [entre actores profissionais e não profissionais] e tento dirigi-los de forma diferente. Não tenho um argumento. Falo com eles sobre as personagens, dou a cada um apenas a sinopse. Nunca a história toda. Tudo se torna assim mais espontâneo. Eu não ensino arte dramática. Nem sei se isso é coisa que se possa ensinar. Digo aos meus actores que têm de ir do ponto A ao ponto B. Não ensaio. Nem lhes digo onde está a câmara. Dou-lhes liberdade. Se algo cai no chão enquanto eles se dirigem de um ponto a outro, eles têm de apanhar; não digo 'corta'. Às vezes surpreendo-os: eles não sabem coisas que vão acontecer na cena".

Filmar todos os dias

Mas as Filipinas fazem-se difíceis para Brillante. O prémio em Cannes a "Kinatay" levou a presidente Gloria Arroyo, ao que se diz pressionada pela imprensa local, a felicitar Mendoza. Que tem reafirmado que não é um embaixador da boa-vontade e que vai continuar a filmar o que filma e a dizer o que acha sobre a sociedade em que vive. Mas o apreço do país tem sido difícil de conquistar. Nem a projecção internacional tem servido (isto não acontece apenas nas Filipinas).
"Tenho reconhecimento internacional, mas no meu país as pessoas não vão ver os meus filmes. Nas Filipinas o público gosta sobretudo do cinema 'mainstream'". E faz o retrato do mercado cinematográfico no seu país: uma indústria em decadência "desde os anos 50", o cinema dito "mainstream" reduzido a "dez filmes por ano"; em contrapartida florescem as produções independentes: "50 por ano, mas poucas pessoas vão ver esses filmes".
"A tecnologia digital torna as coisas mais baratas, podemos filmar com os nossos amigos, todos ajudam, tudo se torna mais apaixonante" - e o cinema filipino começa a apaixonar, ou volta a apaixonar, recorda-se uma figura como Lino Brocka (1939-1991), e a mistura explosiva de melodrama e política desse cinema, com quem Mendoza começa a ser comparado ("Talvez por termos sido cineastas filipinos a ir a Cannes, mas os meus filmes não são como os dele; os filmes dele eram melodramáticos, os meus são mais realistas, pese embora o facto de ambos mostrarmos como as pessoas vivem").
"Não estou com pressa", ri-se - perguntámos-lhe se está a tentar compensar o tempo perdido. "E gozo cada momento do que faço. Ou então provavelmente gosto da pressa. Gosto de estar a filmar todos os dias. A minha experiência na indústria é a minha escola. Não precisei de estudar. O meu cinema é a compilação de toda a minha experiência. Tenho histórias para contar. Tento apenas encontrar o melhor momento para as contar. Todas essas histórias estão comigo há anos. Na minha 'caixa'".
Em construção, em movimento...

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