As fábricas dos ingredientes da vida foram reveladas até ao último átomo

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Venkatraman Ramakrishnan, Thomas Steitz e Ada Yonat, os vencedores anunciados esta quarta-feira Reuters

Dentro de cada uma das células do nosso corpo, bem aconchegada dentro do núcleo, reside uma compridíssima molécula de ADN. Mas o ADN é apenas um livro de instruções genéticas, uma espécie de roteiro para fabricar um ser humano. Trata-se de uma molécula passiva, que só por si não é vida. A matéria de base da vida são as proteínas — a hemoglobina, que transporta o oxigénio no nosso sangue, os anticorpos que nos protegem das doenças, a queratina do nosso cabelo e das unhas, o colagénio da nossa pele e mais umas dezenas de milhares de moléculas desse tipo. E todas essas proteínas são fabricadas pelas células, a partir das instruções do ADN, numas estruturas muito complexas: os ribossomas. Cada ribossoma mede cerca de 25 milionésimos de milímetro e cada célula contém dezenas de milhares de ribossomas.

 

“A tradução da informação do ADN é um dos processos mais primordiais da produção da vida. (...) Os ribossomas produzem proteínas que, por sua vez, controlam a química de todos os organismos vivos”, declarou o comité Nobel, ao explicar a decisão de atribuir este ano o Prémio Nobel da Química a três cientistas “que conseguiram cartografar a posição de cada um das centenas de milhares de átomos dos ribossomas.”

 

Eles são Ada Yonath, do Instituto Weizman de Ciência em Revohot, nascida em Israel em 1939; Thomas Steitz, norte-americano da Universidade de Yale, nascido em 1940; e Venkatraman Ramakrishnan, do Medical Research Council britânico, norte-americano nascido na Índia em 1952. Todos tiveram um papel essencial nesta aventura científica, que durou duas décadas.

 

 

A trilogia de Darwin

 

Quando Darwin postulou a sua teoria da evolução, em meados do século XIX, não se sabia quais eram os mecanismos bioquímicos responsáveis pela transmissão dos traços físicos de um organismo à sua descendência.

 

Em 1962, o primeiro Nobel daquilo a que o comité Nobel chamou ontem “a trilogia de Darwin”, premiou James Watson, Francis Crick e Maurice Willkins pela descoberta da estrutura molecular tridimensional do ADN. Em 2006, outro Nobel recompensou a descoberta de como a informação do ADN do núcleo é copiada para outro tipo de material genético, o ARN mensageiro, encarregado de transportá-la para os ribossomas, situados no citoplasma da célula, onde serão fabricadas as proteínas correspondentes. E agora, o prémio de 2009 recompensa a cartografia atómica dos próprios ribossomas — o mais recente dos avanços que, ao longo dos últimos 45 anos, mostraram “como as teorias de Darwin funcionam efectivamente à escala do átomo”.

 

O último episódio da saga começou nos anos 1970, quando Ada Yonath decidiu tentar “fotografar” um ribossoma graças à cristalografia por raios X. Este método consiste em determinar a estrutura atómica de um cristal iluminando-o com um feixe de raios X para obter uma imagem fotográfica (hoje, uma imagem digital) que informe sobre a disposição dos seus átomos.

 

O empreendimento exigia que se obtivesse um cristal quase perfeito de ribossoma, o que era considerado impossível. Isso não desalentou Yonah, que escolheu tentar a sorte com os ribossomas de bactérias capazes de sobreviver em condições extremas (uma conseguia resistir à salinidade do Mar Morto). A ideia era que esses ribossomas seriam mais estáveis e, portanto, mais facilmente cristalizáveis. “Em 1980, [ela] conseguiu fabricar os primeiros cristais tridimensionais [de uma parte] do ribossoma”, explica um documento do comité Nobel. (...) “Mas seriam precisos mais 20 anos de árduo trabalho para Yonah conseguir uma imagem do ribossoma onde fosse possível determinar a posição de cada átomo.”

 

 

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Entretanto, outros cientistas tinham ficado entusiasmados com os resultados — entre eles, Thomas Steitz e Venkatraman Ramakrishnan.

 

O primeiro conseguiria resolver um problema técnico inerente à cristalografia de raios X, quando se trata de visualizar estruturas tão extensas como os ribossomas. E, em 1998, publicava a primeira imagem de uma das subunidades do ribossoma (a maior das duas que o compõem). “Parecia uma foto de má qualidade”, diz o comité Nobel. “Não era possível ver os átomos, mas distinguia-se as longas moléculas de ARN” (os ribossomas são compostos de ARN e de proteínas). Steitz conseguiria também “apanhar” diversos momentos da formação das proteínas, uma reacção química extremamente rápida.

 

Finalmente, em 2000, os três laureados publicavam imagens de cristalografia que permitiam determinar a posição de cada átomo dos ribossomas.

 

Os resultados de Ramakrishnan, que analisou a pequena subunidade dos ribossomas, foram cruciais para se perceber como é que conseguem traduzir os genes em proteínas sem quase nunca cometer erros. Existe um mecanismo, a cargo dessa subunidade, que verifica duas vezes se a “leitura” do ARN mensageiro está correcta — e que descarta os aminoácidos que não correspondem à sequência de ARN que está a ser traduzida.

 

Afinal, o que faz o ribossoma? Quando o ARN mensageiro desfila entre as suas duas subunidades, o ribossoma “lê” o código genético ali contido (cada combinação de três das quatro “letras”, ou bases, do ARN, representa um dos 20 aminoácidos que compõem as proteínas). Vai juntando esses aminoácidos e liga-os quimicamente, para obter a proteína correspondente (nesta assemblagem participa ainda um outro tipo de ARN, o ARNt — ver infografia). Conclui o comité Nobel: “Os laureados permitiram perceber ao nível atómico como a natureza consegue transformar algo tão simples como um código de quatro letras em algo tão complexo como a própria vida”.

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