Kathryn Bigelow, mulher de armas

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Kathryn Bigelow pintava e estudava semiótica. Hoje, fez "Estado de Guerra", o melhor filme de guerra dos últimos anos - e as duas coisas não são necessariamente exclusivas. Perfil de uma mulher que faz filmes com mais garra que a concorrência quase toda

A culpa, ficam já a saber, é de Scorsese e Peckinpah. Sem eles, talvez uma artista plástica apaixonada pela arte conceptual nunca se tivesse tornado numa cineasta visceral e cinética. Nas palavras da própria à revista "Newsweek", uma sessão dupla com "Os Cavaleiros do Asfalto", o filme que revelou Martin Scorsese, e a lendária "Quadrilha Selvagem" de Sam Peckinpah "pegou em toda a minha saturação desconstrutivisto-Lacaniano-semiótica e distorceu-a completamente. Compreendi que existia uma abordagem mais muscular ao cinema que achei muito inspiradora." O que nos traz, por portas travessas, a "Estado de Guerra", esta semana nas salas, oitava longa-metragem de uma artista plástica que trocou as telas e os pincéis pelas câmaras e por "indivíduos que dão por si em circunstâncias perigosas".

Kathryn Bigelow, 57 anos, natural dos arredores de São Francisco, estudou no Instituto de Artes da Califórnia, venceu uma bolsa do museu Whitney, foi aluna de Susan Sontag, participou em filmes feministas e performances conceptuais, estudou semiótica, fez um mestrado em crítica. Quando começou a fazer cinema, só lhe mandavam argumentos de comédias adolescentes e, diz, percebeu então que para fazer os filmes que queria ia ter de bater o pé e bater-se por eles. Ao "Times" londrino: "Tendencialmente sou atraída por material que pode ser descrito como robusto, muscular, e gostava de ter uma boa explicação para isso. Venho do mundo da arte, e a minha tela foi sempre abstracta, expressionista - gestos largos, formatos grandes - pelo que pode ter a ver com isso. E suponho que me sinto atraída por indivíduos que dão por si em situações perigosas; depois a história, a luta, está toda no modo como eles tentam, ou não, conquistar as suas circunstâncias."
É, aliás, esse o tema recorrente dos seus filmes - oito, apenas, em 25 anos de uma carreira onde os clássicos de culto como "Depois do Anoitecer" ("western vampiro" de 1987 reverenciado por gente como Robert Rodriguez), "Aço Azul" (1989, Jamie Lee Curtis como mulher-polícia) e "Ruptura Explosiva" (1991, o falecido Patrick Swayze como ladrão zen surfista e Keanu Reeves como o polícia que o persegue) coabitam com projectos mais ambiciosos como o "noir" futurista "Estranhos Prazeres" (1995, escrito e produzido pelo ex-marido James Cameron) ou o meditativo thriller de guerra fria "K-19" (2002). São, sempre, sobre o equilíbrio entre a adrenalina e a introspecção, sobre o modo como as pessoas se descobrem em situações-limite.

Odisseia emocional
Não admira que "Estado de Guerra", escrito pelo jornalista Mark Boal a partir das suas próprias experiências quando acompanhou uma brigada de desminagem do exército americano no Iraque, pareça um filme à medida do cinema de Bigelow. Conforme disse ao "Times": "Estes homens têm provavelmente o emprego mais perigoso do mundo, mas estão ali por escolha. Andei sempre à volta disso, a tentar desfazer o paradoxo. O Mark e eu queríamos encontrar um enquadramento que nos permitisse compreender a psicologia de alguém que segue em direcção àquilo de que todos os outros fogem. O que é que isso exige?"
Exige, primeiro, um afastamento da política - o que criou muita confusão a muita gente. "Estado de Guerra" não é um filme sobre o conflito do Iraque, é um filme sobre a guerra (qualquer que ela seja) e sobre os homens que a fazem (ainda à "Newsweek": "o segredinho sujo da guerra é que há homens que a adoram") contado por Bigelow de acordo com a sua abordagem ao cinema. Que passa por dois credos, articulados em entrevistas ao longo dos anos. Um: "Para um filme ser realmente bom, tem que nos interessar intelectualmente. Isso do entretenimento descartável não existe; porque se nos sentirmos realmente transportados, os neurónios estão todos a disparar ao mesmo tempo". Outro: "Transportar o espectador para um acontecimento, ou uma fisicalidade, ou um local, ou uma experiência, ou uma odisseia emocional que seja puramente experiencial."
É, também, por isso que Bigelow é uma cineasta rara, muito selectiva nos projectos que aceita \u2015 quatro anos entre "Ruptura Explosiva" e "Estranhos Prazeres", mais sete deste a "K-19" (intercalados por "The Weight of Water", peça de câmara rodada em 1999 mas apenas estreada em 2002), e mais seis de "K-19" a "Estado de Guerra". Ao "Sunday Herald": "É complicado montar um filme. Leva tempo até encontrar uma peça em que acredite o suficiente para lhe dedicar uma grande parte da minha vida. "Estado de Guerra" levou-me cinco anos." Mas foi a experiência mais feliz que ela já teve num plateau - uma rodagem relâmpago de 44 dias na Jordânia, com zero interferência da produção independente e liberdade total para fazer o filme que quis. E que \u2015 para abordarmos o "tabu" evidente - ninguém diria ser feito por uma mulher.
Mas Kathryn Bigelow não está nada interessada na velha conversa de uma mulher não poder fazer "filmes de homens". Há alguns anos, disse à revista americana "Première": "Escolho ignorar isso como um obstáculo por duas razões: primeira, não posso mudar o meu sexo, segunda, recuso parar de filmar. É irrelevante quem realizou um filme, o importante é como reagimos perante ele." E ao cinema de Kathryn Bigelow ninguém fica indiferente.

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