"Limito-me a deixar a cidade acontecer-me"

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Jan Morris diz-nos que os seus livros são "essencialmente autobiográficos". "Veneza" é a cidade num tempo, os anos 60, quando Jan ainda era James

Não vale a pena pedir-lhe uma receita específica. Jan Morris não vai dizer se, quando se prepara para escrever sobre uma cidade, se fecha numa biblioteca a ler tudo o que pode, se senta num café a olhar em volta, se fala com quem quer que se lhe atravesse no caminho. "Nunca pensei em mim como uma escritora de viagens", responde ao Ípsilon por email. "E a minha técnica baseia-se em dois princípios preguiçosos. O primeiro tomei-o de E. M. Forster: 'Vaguear sem objectivo'. O segundo dos Salmos: 'Arreganha os dentes como um cão e corre pela cidade'. Tirando isso limito-me a deixar a cidade acontecer-me".

É isto. Parece simples, mas é o que faz de Morris, nas palavras de outro grande escritor de viagens, Paul Theroux (também numa conversa com o Ípsilon por email), "uma das grandes escritoras descritivas em língua inglesa". Morris "consegue descrever um céu, um cheiro, um rosto humano, qualquer coisa, de uma forma que faz com que a vejamos claramente".

Não se espere, nos livros de Jan Morris - e num livro como "Veneza" - um relato tradicional de uma viagem, com a chegada, os pequenos (ou grandes) acontecimentos dos dias que se seguem contados de forma cronológica até ao momento de apanhar novamente o avião de partida. Não é isso que Morris faz. "Não tenho que resistir a isso, não sou uma escritora de pequenas histórias", responde no email.

Há, na escrita dela, muitos dados históricos, mas que são sempre habilmente entrelaçados com as histórias que conta. E estas resultam de uma apaixonada observação, misturada com um humor fino: "Por vezes uma dona de casa veneziana anuncia conclusivamente que naquele dia não se encontram couves na cidade: mas o que ela quer dizer é que, naquela manhã, as couves se esgotaram na mercearia a esquina do Campo de San Barnaba, onde a família dela faz compras desde o tempo das primeiras Cruzadas". Ou: "Os pais venezianos levam os bebés ao colo com um regalo assumido, e as mães venezianas dão sinais de imediata crise cardíaca se o pequeno Giorgio estiver a dois metros da água. As crianças venezianas andam vestidas com requinte, ainda que por vezes pareçam um pouco ridículas".

Ambição ilimitada

Uma das coisas que Carlos Vaz Marques, o coordenador da colecção da Tinta da China sobre literatura de viagens, gosta em Jan Morris é o facto de "ela ser uma escritora-viajante com uma ambição ilimitada" que "não tem receio de querer abarcar a totalidade dos lugares a que dedica atenção". É por isso que "ao contrário do que se tornou comum, e não apenas na literatura de viagens, ela não é uma escritora pós-moderna".

O seu relato "não é circunstancial", não se baseia nas pequenas histórias que podem ou não ter um significado maior. Nunca chegamos a saber se aquilo que aconteceu a determinado escritor é relevante para a visão do país ou da cidade ou se foi apenas um episódio muito particular que lhe aconteceu por acaso - é a isto que Carlos Vaz Marques chama um relato "circunstancial". "São escritores que contam a sua história com o pressusposto de que um ponto de vista é apenas um ponto de vista e que não é possível ter um olhar total sobre a realidade", o que, sendo "um pressuposto filosófico e relativista respeitável", acaba por ser na maior parte dos casos "um estratagema para mascarar a falta de 'génio' ou a incapacidade do autor para ver para lá da sua circunstância".

Morris não o faz. "Muita da escrita de viagens publicada tem como tempo verbal fundamentalmente o pretérito perfeito, 'fui, estava, vi', o dela é o imperfeito, 'via, estava', o que dá uma continuidade no tempo, e faz com que na maior parte dos casos ela descreva quadros que parecem intemporais".

A própria Jan explica ao Ípsilon que embora "Dickens tenha escrito de forma muito bela sobre Veneza ao fim de apenas um dia", no seu caso escreveu livros sobre lugares aos quais se dedicou durante cerca de um ano - "e no do País de Gales, uma vida inteira!". E confessa que é, como toda a gente, influenciada pelas experiências que tem numa cidade. "Sou particularmente sensível ao que acontece porque os meus livros são essencialmente autobiográficos - para não dizer que são egotistas. Descrevem o efeito dos lugares não em geral, mas sobre uma sensibilidade particular - a minha própria. Nunca me tento colocar no lugar dos outros - escrevo sobre as minhas próprias reacções".

Veja-se o início de "Veneza": "A 45º 14'N, 12º18'E, o navegador que vá subindo ao longo da costa adriática de Itália encontra uma abertura na extensa linha baixa da praia: e virando para oeste, com a ajuda da maré, entra numa laguna. De súbito,desaparece o vigor tempestuoso do mar. A água em volta é baixa mas opaca, a atmosfera curiosamente translúcida, as cores são pálidas, e sobre toda a extensão da bacia de lama e água pesa uma sugestão de melancolia. É como que uma laguna albina". Essas páginas iniciais, explica ela hoje, "correram bem". "Toda a minha visão de Veneza é largamente influenciada pelo facto de ter acesso a barcos lá, e ainda hoje aquilo que mais gosto é aproximar-me dela por mar".

Paul Theroux concorda que os livros de Morris [que tem, entre muitas dezenas de obras publicadas, retratos também de Triestre, Oxford, Hong Kong, e relatos de viagens em inúmeros países, para além de ensaios] "estão cheios das suas opiniões, da sua história, da sua sensibilidade". E considera que não há nela "um 'estilo' deliberado". "Ela escreve como pode, como o faz, e é facilmente identificável na sua escrita. E conhece o mundo como poucas pessoas". Afinal, conclui Theroux, "ela percorreu o mundo como homem, e também como mulher - quem mais pode dizer isso?".

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