Arábia Saudita, cada vez mais isolada, pode admitir "morte" de jornalista dissidente

A insistência de Riade em afirmar que nada sabe sobre o jornalista Jamal Khashoggi, desaparecido desde 2 de Outubro, parece estar a ceder à pressão internacional.

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Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita OLIVIER DOULIERY/EPA

A história do desaparecimento na Turquia do jornalista e dissidente saudita Jamal Khashoggi, no dia 2 de Outubro, transformou-se num complexo jogo de xadrez internacional, com possíveis consequências em áreas tão sensíveis como os preços do petróleo e as relações de poder entre Estados Unidos, Arábia Saudita e Irão. E a reviravolta mais dramática aconteceu esta terça-feira, com a notícia de que o reino saudita estará prestes a admitir, em parte, o que o resto do mundo já dava como certo: Khashoggi foi morto no consulado da Arábia Saudita em Istambul, no dia 2 de Outubro, apesar de o reino ter garantido que o jornalista saiu do edifício pelo seu próprio pé.

Não houve uma investigação independente, nem há indícios de que o corpo de Khashoggi possa vir a ser encontrado, apesar de um responsável do Governo turco ter confirmado à CNN, esta terça-feira, que o jornalista foi "cortado aos pedaços" – uma informação avançada pelo New York Times nos primeiros dias após o desaparecimento.

Mas a cronologia dos acontecimentos e as informações dos serviços secretos turcos e norte-americanos são suficientes para que a própria família do jornalista já tenha aceitado o pior desfecho. Num comunicado publicado na segunda-feira, os filhos de Khashoggi pedem que seja aberta "uma investigação internacional independente às circunstâncias da morte".

Tudo começou no início do mês, quando o jornalista saudita, conhecido por criticar o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul para tratar dos papéis do seu casamento com a turca Hatice Cengiz.

A passagem de Khashoggi pela Turquia seria breve – há um ano, o jornalista decidiu mudar-se para os Estados Unidos, onde continuava a escrever textos, no Washington Post, a criticar as supostas reformas do príncipe herdeiro, que os seus opositores dizem ser pouco mais do que uma fachada para esconder mais abusos, perseguições e condenações à morte.

As imagens das câmaras de segurança mostram que Khashoggi entrou no consulado e que Cengiz ficou no carro, à espera. Só que Khashoggi nunca mais saiu. E quando Cengiz alertou para esse facto, os responsáveis sauditas garantiram que o jornalista saíra pelo seu próprio pé, apesar de não haver imagens de câmaras de segurança que confirmem essa versão.

As causas do desaparecimento e provável morte de Jamal Khashoggi continuam por esclarecer, mas vários pedaços de informação dos serviços secretos norte-americanos e turcos que vieram a público nas duas últimas semanas ajudam a compor o cenário mais provável.

Segundo essas informações, há registo de conversas entre figuras do reino da Arábia Saudita a combinarem um plano para capturar e interrogar Jamal Khashoggi, com a intenção de o forçar a regressar à Arábia Saudita. E os serviços secretos turcos dizem, desde a primeira hora, que têm registos em áudio e vídeo que provam que o jornalista foi torturado e morto no consulado, e que o seu corpo foi depois desmembrado.

A Turquia diz também que 15 sauditas entraram e saíram do país, e também no consulado em Istambul, no dia 2 de Outubro. Entre eles, segundo os serviços secretos turcos, estava Salah Muhammed al-Tubaiqi, identificado pela CNN como sendo um especialista em autópsias no Ministério do Interior saudita.

Esta terça-feira, a Turquia conseguiu finalmente que a Arábia Saudita autorizasse a entrada de especialistas turcos no consulado em Istambul, horas depois de um jornalista da CNN ter visto a entrar no edifício material de limpeza. Segundo o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, os especialistas encontraram indícios de que algumas partes estão pintadas de fresco.

Mas, até agora, a Arábia Saudita não só negava aquela versão dos acontecimentos como ameaçava retaliar contra quem sugerisse que o reino está envolvido no caso. No domingo, um responsável saudita, citado pela agência estatal sob anonimato, disse que o país responderia "com medidas fortes" a eventuais sanções de países como os Estados Unidos, Reino Unido, França ou Alemanha, que têm pedido a abertura de uma investigação independente sobre o caso.

"Assassinos sem autorização"

Agora, essa pressão internacional parece começar a dar os primeiros resultados, mas não no sentido dos apelos lançados pela família de Khashoggi ou pelas várias organizações de defesa dos direitos humanos – ou seja, a Arábia Saudita pode vir a reconhecer que o jornalista foi morto, mas tudo terá acontecido de forma acidental e sem autorização dos mais altos responsáveis.

A possível mudança de versão oficial da Arábia Saudita, noticiada pela CNN e por jornais como o Washington Post e o New York Times, começou com uma conversa telefónica entre o Presidente norte-americano, Donald Trump, e o rei Salman, na segunda-feira.

Pouco depois desse telefonema, numa conversa com jornalistas nos jardins da Casa Branca, Trump disse que Salman "negou com firmeza" ter qualquer informação sobre a morte de Khashoggi, mas avançou uma hipótese: "Não quero entrar na cabeça dele, mas pareceu-me que podem ter sido assassinos que agiram sem autorização oficial. Quem sabe? Vamos tentar esclarecer tudo rapidamente, mas ele negou de forma clara."

Horas depois, já esta terça-feira, vários canais de notícias e jornais norte-americanos começavam a fazer eco de uma versão semelhante à que foi sugerida pelo Presidente Trump, que a Arábia Saudita estaria a preparar para adoptar como a sua nova versão oficial: Khashoggi foi interrogado por um grupo de agentes sauditas, que actuaram de forma opaca e sem autorização do príncipe herdeiro, e acabou por ser morto no decorrer do interrogatório, sem que essa fosse a intenção inicial. Segundo esta versão, o reino iria também comprometer-se a punir os responsáveis.

Numa das várias reacções a esta versão, o senador norte-americano Chris Murphy, do Partido Democrata, disse que se trata de "uma teoria ridícula", e acusou o Presidente Trump de estar a agir como "um agente de relações públicas" da Arábia Saudita. Como senador, Chris Murphy teve acesso, em segredo, às informações sobre o caso recolhidas pelos serviços secretos norte-americanos.

Armas e Irão

A confirmar-se a mudança de versão oficial na Arábia Saudita, confirma-se também a extrema gravidade do caso. Para além da preocupação em esclarecer o que levou à morte de um jornalista dissidente, os países interessados querem também garantir que o caso não desestabilize ainda mais as relações entre si.

Apesar das ameaças feitas em público pelos EUA à Arábia Saudita – algo raro na relação entre os dois países –, o Presidente Trump já disse que não quer cancelar uma venda de armas ao país no valor de 110 mil milhões de dólares (95 mil milhões de euros).

"É o melhor equipamento do mundo, mas se eles não nos comprarem a nós, vão comprar à Rússia, à China ou a outros países", disse Trump no sábado, pouco depois de ter ameaçado a Arábia Saudita com um "castigo severo" se o caso de Jamal Khashoggi não for esclarecido.

Por outro lado, a Casa Branca também precisa que a Arábia Saudita continue a vender mais petróleo do que o normal, para preencher o rombo no mercado provocado pela entrada em vigor das sanções norte-americanas contra o Irão – algo que poderia ficar em causa se o reino saudita se sentisse ameaçado pelos EUA e seus parceiros europeus.

E à Turquia também interessa que o caso seja resolvido o mais depressa possível, sem um agravamento das relações com a Arábia Saudita.

Por um lado, Ancara quer enviar um sinal de que a Turquia não vai deixar de ser um porto seguro para os membros da Irmandade Muçulmana, que fugiram dos seus países à medida que a Primavera Árabe foi fracassando – e a Irmandade Muçulmana está na lista de organizações terroristas da Arábia Saudita. Por outro lado, o Presidente turco não quer arriscar uma guerra económica com a Arábia Saudita, que poderia enfraquecer o país e afectar a sua liderança.

"Por isso, não seria nenhuma surpresa se esta teoria dos 'assassinos sem autorização' pegasse e que Erdogan a aceitasse", disse Soner Cagaptay, do Washington Institute, ao site da revista Atlantic. "Também não me surpreenderia se, no final deste caso, os sauditas ajudassem financeiramente a Turquia e a sua economia."

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