A bebé de Teodora nasceu morta e por causa disso ela esteve dez anos presa por homicídio

Tribunal comutou pena de salvadorenha que fora condenada a 30 anos de prisão depois de ter sido acusada de matar a filha que acabara de nascer, e libertou-a esta quinta-feira. Que lei é esta que trata como homicidas mulheres que nunca mataram ninguém?

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Teodora del Carmen Vásquez esta quinta-feira, abrançando a sobrinha à saída da prisão Reuters/JOSE CABEZAS

2007. Teodora del Carmen Vásquez estava já no fim da gravidez e entusiasmada com a chegada de mais um bebé. Esta salvadorenha que tinha então 24 anos mal podia esperar para dar uma irmã ao rapaz de quatro que já tinha em casa. Estava a trabalhar quando sentiu uma dor aguda no abdómen, conta o diário britânicoThe Guardian, e ainda conseguiu ligar para os serviços de emergência antes de perder os sentidos na sequência de uma grave hemorragia. Teve a bebé na casa-de-banho do liceu onde trabalhava como empregada da limpeza e nem sequer deu por isso. Tinha esperado horas por assistência médica.

Quando recuperou a consciência estava rodeada de polícias que a acusavam de ter provocado a morte da filha. Entre eles houve até quem dissesse que a estrangulara. Em seguida foi algemada e detida. Começou, então, uma longa batalha para a sua libertação. Uma batalha que terminou esta quinta-feira quando Teodora deixou a prisão e pôde abraçar, de lágrimas nos olhos mas a sorrir, a mãe, Maria Elena, e a sobrinha.

Nada fazia prever este desfecho depois de um tribunal de recurso ter confirmado em Dezembro a sentença original, ignorando a opinião de especialistas forenses independentes convocados pela defesa que descredibilizaram os resultados da autópsia inicial, considerando-a “inadequada”.

“A libertação de Teodora era há muito devida”, disse Nancy Northup, presidente do Centro para os Direitos Reprodutivos (CRR), uma organização sediada em Nova Iorque que tem vindo a trabalhar com a Associação de Cidadãos Salvadorenhos para a Descriminalização do Aborto na libertação de nove mulheres que estão presas depois de sofrerem sérias complicações na gravidez.

Em declarações ao Guardian, esta activista congratulou-se pelo facto de o tribunal ter finalmente determinado que se tratava de um “sentença injusta, excessiva e desproporcionada” e lançou um repto ao Governo de São Salvador para que faça da revisão deste diploma legal uma prioridade e para que liberte as mulheres que, tendo sofrido sérias complicações no parto ou na gravidez, ainda se encontram presas sob a acusação infundada de terem causado a morte dos seus filhos.

Diz esta lei que a pena máxima em caso de aborto no país pode ir até aos oito anos de prisão, mas a prática é bem diferente, já que muitas vezes os advogados do Ministério Público transformam interrupções espontâneas da gravidez e problemas obstétricos em “homicídios agravados”.

Lei pesada

Teodora del Carmen Vásquez, 34 anos, passou dez anos e sete meses na prisão por causa de um crime que sempre negou veementemente ter cometido.

Sentenciada a 30 anos de cadeia viu a pena ser-lhe comutada porque o Supremo Tribunal considerou que não estavam reunidas suficientes provas científicas de que Teodora tenha provocado a morte da filha ainda por nascer.

Segundo o diário britânico The Guardian, esta é a 16.ª mulher a ser libertada graças às intensas campanhas cívicas pelos direitos sexuais e reprodutivos, levadas a cabo no país por vários advogados e Organizações Não Governamentais (ONG), com o apoio da Amnistia Internacional e da Human Rights Watch.

Estas campanhas decorrem sempre num ambiente altamente hostil, já que El Salvador é um dos países do mundo em que a lei que criminaliza o aborto é mais penalizadora. Para complicar este cenário, a imprensa conservadora é terreno fértil para as acções dos poderosos grupos que se opõem à interrupção voluntária da gravidez.

Em Dezembro, quando Teodora viu a sua pena confirmada, estavam presas por desrespeito à lei do aborto pelo menos 31 mulheres, todas acusadas de homicídio agravado, segundo o jornal espanhol Público, que cita dados do grupo La Colectiva Feminista. Outra destas mulheres deverá ser libertada já no decorrer do próximo mês de Março.

A lei salvadorenha, que entrou em vigor há 20 anos, proíbe o aborto em quaisquer circunstâncias, o que o transforma numa prática que é sempre criminalizada, mesmo que a mulher tenha engravidado na sequência de uma violação, que o feto tenha malformações graves ou que um eventual nascimento ponha em risco a vida da mãe. El Salvador é um dos poucos países do mundo em que tal acontece, continua o Público (neste grupo estão, por exemplo, a Nicarágua, as Honduras, a República Dominicana e Malta).

Muitas das salvadorenhas perseguidas pela polícia e pelos tribunais, e depois encarceradas sob acusação de homicídio, são pobres, desprotegidas e sofreram abortos espontâneos ou, como Teodora, tiveram nados-mortos, alertam as ONG que lutam pelos seus direitos. As mesmas ONG que lembram, uma e outra vez, que esta legislação é, em primeiro lugar, produto de um país marcado por uma cultura machista que não consegue conceber que uma mulher não queira ser mãe.

No ano passado, num dos casos que mais atenção mediática teve, uma adolescente que sobreviveu a uma violação foi condenada a 30 de prisão depois de dar à luz um nado-morto porque o tribunal entendeu que o facto de ela não ter garantido cuidados médicos durante a gravidez equivalia, no caso, a um homicídio.

Segundo o jornal americano The New York Times, à saída da prisão, Teodora disse aos jornalistas que está desejosa de passar os próximos tempos com o seu filho, agora com 14 anos, e restante família, mas que não vai deixar de lutar pela libertação das outras salvadorenhas que, como ela, foram acusadas. Os dez anos que passou na prisão, explicou ainda, permitiram-lhe estudar e tomar consciência desta e de outras injustiças da vida em El Salvador.

Maria Teresa Rivera, que foi libertada em 2016 depois de cumprir quatro anos e meio de uma pena de prisão de 40 devido a acusações semelhantes e que vive hoje exilada na Suécia, enquanto os procuradores continuam a trabalhar no seu caso, defende que “estas leis misóginas” só afectam as mulheres de baixa condição social que sofrem complicações, já que as que têm dinheiro recorrem a uma clínica privada no país ou no estrangeiro para interromper a gravidez. Nas páginas do Guardian, deixou a Teodora uma mensagem de esperança: “Desejo-lhe tudo de bom. Não é fácil começar de novo, mas não é impossível.” Maria Teresa Rivera sabe do que fala.

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