Testes a emissões de gases de carros também envolveram cobaias humanas

Alemanha em choque com revelações sobre o uso de jovens em ensaios laboratoriais para apurar os efeitos do dióxido de azoto. Governo de Merkel diz que é “absurdo” e “injustificável”.

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Construtoras alemãs queriam provar a segurança para a saúde pública das emissões dos modelos a diesel © Reuters Photographer / Reuter

O instituto financiado por três fabricantes de carros – Volkswagen, BMW e Daimler (detentora da marca Mercedes-Benz) – que recorreu a macacos para fazer testes laboratoriais das emissões de automóveis a gasóleo também usou seres humanos como cobaias. A imprensa alemã dá como certo o recurso a cobaias humanas e relata com detalhe a realização de testes em 2016, numa clínica em Aachen, envolvendo 25 jovens saudáveis.

A Alemanha segue em crescente estado de choque as informações que estão a ser publicadas e a imprensa online germânica é o espelho dessa sensação de escândalo, que já afectava a indústria automóvel alemã desde o caso das fraudes na medição de emissões de carros a gasóleo, que ficou para a história como o dieselgate.

A partir de Berlim, o porta-voz da chanceler, Angela Merkel, foi taxativo na condenação. “Estes testes com macacos ou pessoas não têm qualquer justificação no plano ético”, disse Steffan Seibert, numa conferência de imprensa cujo vídeo foi partilhado pelo próprio no Twitter. 

Os primeiros detalhes sobre o uso de macacos surgiram na semana passada nos Estados Unidos, num artigo do New York Times, ao passo que as informações sobre o uso de cobaias humanas foram publicadas no domingo por um diário alemão, o Stuttgarter Zeitung, de Estugarda, onde fica a sede da Daimler AG, Mercedes e Porsche. Menos de 24 horas depois, toda a imprensa alemã faz eco das experiências com humanos – que a ministra do Ambiente da Alemanha, Barbara Hendricks, classifica como “abominável”.

Segundo a edição online da revista Spiegel, 25 jovens saudáveis foram usados, em 2016, em testes levados a cabo numa clínica de Aachen, cidade da Renânia do Norte-Vestefália, a uma hora de distância de Colónia e próxima das fronteiras com a Bélgica e com a Holanda. Os ensaios envolveram dióxido de azoto (NO2), um poluente que resulta em grande parte da combustão do gasóleo, mas também de fábricas e outros equipamentos. 

Respirar ar com grandes concentrações de dióxido de azoto pode irritar as vias respiratórias, mesmo se a exposição for por um período curto. Há o risco de agravamento de doenças crónicas, em especial a asma, de uma forma que exija o internamento ou, pelo menos, atendimento de emergência, diz uma brochura de informações básicas da Agência de Protecção Ambiental dos Estados Unidos. O NO2 reage com outros químicos na atmosfera para formar partículas em suspensão e ozono – e ambos são prejudiciais quando inalados. Se interagir com água, oxigénio e outros químicos, pode gerar chuva ácida.

Os ensaios realizados em 2016 implicaram que o painel de cobaias humanas inalasse N02 “durante várias horas, em diferentes concentrações”. Em seguida, foram “sujeitos a exames médicos”. No final, acrescenta a Spiegel, “não foi possível chegar a qualquer relação conclusiva”.

Estes testes foram levados a cabo pelo Grupo Europeu de Investigação Ambiental e de Saúde no Sector dos Transportes (EUGT, na sigla oficial alemã), um organismo inteiramente financiado pela Volkswagen, Daimler e BMW, fundado em conjunto com a Bosch (que abandonou a entidade em 2013). O EUGT foi dissolvido em 2017.

“Estes ensaios, sejam eles feitos em macacos ou humanos, suscitam muitas questões críticas para quem os organizou”, declarou Steffan Siebert, porta-voz do Governo federal alemão. “Não são apenas questões éticas que deveriam merecer resposta imediata das empresas envolvidas, mas também a dúvida sobre que objectivo tinham afinal essas empresas para os levarem a cabo”, acrescentou, em tom crítico. Lembrou que a tendência da indústria automóvel tem sido a de diminuir as emissões em nome do ambiente, algo nunca implicou a necessidade de fazer testes em animais ou humanos.

Na quinta-feira, o jornal norte-americano The New York Times tinha noticiado testes feitos nos EUA, no estado do Novo México, que envolveram macacos – uma informação que gerou desde logo uma chuva de críticas, agora reforçada pelas últimas revelações.

A partir de Estugarda, o grupo Daimler distanciou-se destes ensaios laboratoriais, condenando-os “veementemente”. Um porta-voz ouvido pelo diário alemão que trouxe a público o uso de cobaias humanas garantiu ainda que os testes de Aachen com jovens “contradizem os valores e princípios éticos” do grupo, que é responsável por uma das principais marcas alemãs na indústria automóvel, a Mercedes-Benz.

Em Wolfsburgo, sede da Volkswagen, o chairman (presidente) do grupo exigiu a abertura imediata de um inquérito para apurar responsabilidades. “Em nome de todo o conselho de administração, condeno e rejeito estas práticas”, declarou Hans Dieter Pötsch – o austríaco que preside também à Porsche – num comunicado publicado no site da Volkswagen. Exige ainda um “esclarecimento cabal e completo” dos ensaios, cujo objectivo seria avaliar se as emissões contêm elementos cancerígenos e se constituem ameaça para a saúde pública.

Universidade defende ensaios

A Volkswagen foi uma das marcas a protagonizarem o escândalo dieselgate, em 2015, que envolvia a manipulação das emissões de alguns modelos a diesel produzidos pelo grupo. Nesse ano, descobriu-se que milhões de viaturas em circulação emitiam gases poluentes em doses superiores àquelas que eram garantidas pelos fabricantes, o que gerou uma sucessão de processos judiciais e de multas aplicadas às marcas prevaricadoras, originando prejuízos à Volkswagen.

Para a indústria alemã, este novo caso “é mais um grande tiro no pé”, considera um analista alemão, Stefan Bratzel, ouvido pela agência Bloomberg. Director do Centro de Gestão Automóvel sediado em Bergisch Gladbach, perto de Colónia, Bratzel afirma que o episódio “mostra como os fabricantes ultrapassaram a linha moral e ética na luta para que o gasóleo seja socialmente mais aceite”.

Apesar das críticas, a Universidade de Aachen, que usou a clínica em que decorreram os testes com humanos, veio a público garantir que tudo foi feito segundo as normas. A instituição defendeu os ensaios, garantindo que tinham sido aprovados por uma comissão de ética independente. Acrescentou ainda que os exames visavam estudar o efeito dos gases de NO2 no local de trabalho de profissionais como soldadores e mecânicos.

Uma explicação que não sossegou Stephan Weil, o líder do governo regional da Baixa Saxónia e membro do conselho de administração da Volkswagen. “As palavras ‘absurdo’ e ‘repugnante’ aplicam-se, com certeza, agora mais do que nunca se [os testes foram] aplicados a humanos”, afirmou, segundo a Bloomberg. “Urge saber agora se foi esse o caso, sob a responsabilidade de quem e quando”, declarou.  

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