Depois do acordo de divórcio, vem "o mais difícil"

May fez muitas cedências para cumprir os prazos. Os líderes europeus devem aprovar o pacto na cimeira europeia da próxima semana, abrindo a segunda fase das negociações sobre a futura relação entre Londres e Bruxelas.

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Pequeno almoço de trabalho na Comissão Europeia, antes do anúncio ERIC VIDAL/EPA
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May e Tusk OLIVIER HOSLET/EPA
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O primeiro-ministro irlandês disse que o acordo sobre a fronteira é "à prova de bala" LUSA/AIDAN CRAWLEY
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O aperto de mão entre May e Junker YVES HERMAN/Reuters

O Reino Unido e a União Europeia fecharam um acordo que protege os direitos dos cidadãos europeus que vivem no Reino Unido e vice-versa, garante que não há uma fronteira fechada entre as duas Irlandas e estabelece o montante que Londres pagará a Bruxelas. A partir desta base, que encerra a primeira fase das negociações do “Brexit”, as duas partes podem começar a discutir, já no início do próximo ano, o futuro das relações bilaterais. Um processo que será ainda mais difícil, como alertou o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk.

“Romper é difícil, mas romper e construir uma nova relação ainda é mais difícil”, observou Tusk.

A fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) era o ponto que estava a bloquear os avanços e na madrugada de sexta-feira as duas partes comprometeram-se a que, seja qual o acordo de comércio que vierem a negociar, adoptarão as medidas necessárias para que não volte a haver polícia ou os controlos alfandegários naquela divisória. 

Uma primeira versão do acordo foi bloqueada na segunda-feira pelo Partido Democrático Unionista (DUP), cujos dez deputados permitem a Theresa May ter maioria no Parlamento britânico. Nessa proposta inicial, o Reino Unido assumia que, no caso de não conseguir negociar um acordo comercial de grande proximidade com a UE, a Irlanda do Norte manteria normas suficientemente próximas dos actuais parceiros para tornar dispensáveis os controlos fronteiriços. Na prática, tratava-se de atribuir um estatuto de excepção para que a região se mantivesse ligada ao mercado único europeu e à união aduaneira, ao contrário do que Londres assegura que irá acontecer com o resto do país.

Agora, o texto adopta uma formulação que promete não criar qualquer distinção entre a Irlanda do Norte e o resto do país, como era exigido pelo DUP. Em caso de não haver acordo de livre comércio mais favorável, “o Reino Unido vai um manter alinhamento total com as regras do mercado único e da união aduaneira que, agora ou no futuro, apoiem a cooperação Norte-Sul, a economia da ilha e a protecção do acordo [de paz] de 1998”, diz o texto do documento.

Arlene Foster, a líder do DUP, disse à Sky News que o acordo tem “uma confirmação clara de que todo o Reino Unido está a sair da UE, do mercado único e da união aduaneira”. Porém, ao jornal The Guardian, fontes do partido disseram que continua a haver dúvidas quanto ao teor do acordo.

Na República da Irlanda, o primeiro-ministro Leo Varadkar considerou o documento uma vitória estrondosa para a diplomacia europeia que, disse, conseguiu um acordo “de ferro forjado” e “à prova de bala” que garante que não há entre as duas partes da ilha uma fronteira fechada depois do “Brexit”.

May e Bruxelas estavam numa corrida contra o tempo para garantir que o acordo ficava selado em tempo útil — as duas partes querem dar luz verde à segunda fase das negociações no Conselho Europeu de 14 e 15 de Dezembro. Mas Bruxelas tinha dado até este domingo a May para avançar com novas propostas, depois da humilhação de segunda-feira.

May, dizem muitos analistas, cedeu nos principais pontos que estavam sobre a mesa para poder anunciar o acordo e avançar para a negociação sobre um acordo que será vital para o futuro da sua economia. “Felicito vivamente a passagem à fase seguinte das discussões sobre o ‘Brexit’”, disse May que chegou ao raiar do dia a Bruxelas para uma reunião final com o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.

Cedeu na chamada factura do “Brexit” — e pagará entre 35 e 39 mil milhões de libras (40 a 45 mil milhões de euros), um valor inferior aos 50 mil milhões de libras (56 mil milhões de euros) de que se vinha falando nos últimos meses. O documento não define um montante exacto, mas estabelece a metodologia de cálculo dos compromissos financeiros que o Reino Unido vai liquidar. 

Cedeu quanto à fronteira irlandesa e também quanto à competência do Tribunal de Justiça da UE, ao aceitar que nos oito anos seguintes ao “Brexit” possa ser instância de último recurso em casos muito específicos respeitantes aos direitos dos cidadãos europeus que residem no país.

“O acordo exigiu concessões dos dois lados — disse May —, e serve o interesse do Reino Unido. É justo para os contribuintes britânicos e preserva a integridade do Reino Unido”.

“Dezoito meses depois do referendo [que determinou a saída da UE], os britânicos fizeram o que qualquer observador da realidade já sabia que teriam que fazer: curvaram-se”, diz um texto de opinião publicado no Guardian. “Ao ceder a todas as exigências da UE, o governo de May mostrou que está finalmente a aprender a comportar-se como o sócio minoritário que é. Bruxelas e os Estados-membros são demasiado educados para o dizer em voz alta, mas o padrão para os britânicos se relacionarem com a UE na próxima década é simples: engolir em seco”.

Assentes os princípios do “divórcio”, as atenções viram-se agora para a nova fase das negociações. Se os chefes de Estado e de Governo da UE concordarem na próxima semana com a avaliação da Comissão, poderão autorizar que se comece “de imediato” a discutir o futuro. 

A prioridade será a definição dos moldes do período de transição de dois anos que o Reino Unido solicitou (para garantir que a sua saída da UE, em Março de 2019, não lança o país num precipício) e a ainda mais complexa tarefa de lançar as bases de um futuro acordo de comércio. E se até agora o tempo foi escasso, a partir de agora rareia. “Temos, de facto, menos de um ano”, sublinhou Tusk.

Ainda segundo o Guardian, a segunda fase da negociação pode arrancar só em Fevereiro e se houver entendimento no Governo May sobre o modelo da futura relação.

Se até aqui May sabia o que queria — dar início ao processo porque, como disse ao tomar posse no Verão de 2016 “Brexit significa Brexit” —, nem ela nem ninguém no Governo definiu com clareza que tipo de relação quer manter com o outro lado do canal da Mancha. 

Até agora Londres tem rejeitado um modelo semelhante ao da Noruega, que tem acesso ao mercado único a troco de contribuições para o orçamento comunitário e o respeito pela liberdade de circulação (termos inaceitáveis para os eurocépticos e para os eleitores que votaram a favor do “Brexit”). Perante isto, Bruxelas avisa que o Reino Unido não pode esperar mais do que um acordo semelhante ao que foi assinado com a Canadá (o que deixaria a indústria financeira britânica com um acesso muito limitado aos mercados europeus).

“Queremos manter uma relação próxima e de cooperação com os nosso vizinhos europeus quando estivermos fora da UE, baseada na solidariedade, no mútuo benefício e no comércio justo”, a par do estabelecimento de laços, comerciais e não só, com o resto do mundo, disse o líder da oposição trabalhista, Jeremy Corbyn.

Na Escócia, que quer manter os laços actuais com a UE, a primeira-ministra Nicola Sturgeon saudou o acordo como “um passo em frente positivo”. Agora que se vai falar de circulação de pessoas e bens, Sturgeon quer um papel nas negociações: “A próxima fase vai ser significativamente mais dura e é essencial que todos os governos do Reino Unido estejam envolvidos na negociação — o que não aconteceu até agora”. “Queremos que seja clarificado se o governo de Londres vai aceitar o mercado único e a união aduaneira”, disse Sturgeon, tocando no ponto do acordo anunciado esta sexta-feira sobre a fronteira irlandesa. “Para mim é claro que o acordo especial para a Irlanda do Norte deve ser dado a outras nações do Reino Unido”, sublinhou, dizendo que recusa que a Escócia fique em desvantagem.

Em Bruxelas celebra-se, para já, o que muitos consideram uma vitória diplomática. Mas o jornal alemão Süddeutsche Zeitung alerta para os problemas que se avizinham. “A mensagem nesta sexta-feira em Bruxelas é esta: não vai ser mais fácil, pelo contrário. Resta saber se conseguem manter uma frente unida. Até agora, todos os 27 estados tinham um interesse comum, mas no que diz respeito a um acordo sobre a futura relação, a situação é diferente”. “As nações mais fortes economicamente, como a Holanda e a Alemanha, têm interesses diferentes de, por exemplo a Grécia ou a Bulgária”.

 

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