Oficiais admitem que curso de Comandos não reunia condições

Altas patentes do Exército nas áreas da saúde e psicologia e dois majores que inspeccionaram curso, em que morreram dois recrutas, foram interrogados. Dizem que instrução não devia ter começado

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Curso 127 dos Comandos começou a 4 de Setembro no Campo de Tiro de Alcochete PEDRO CUNHA

Dois tenentes-coronéis e três majores, que foram ouvidos como testemunhas nas últimas duas semanas no âmbito da investigação à morte de dois recrutas do Curso 127 dos Comandos e que têm responsabilidades no Exército na área da saúde, psicologia e no Estado-Maior, admitiram que nunca estiveram reunidas as condições para o curso se realizar. A recruta nunca devia ter começado, concluem nos depoimentos que constam do processo-crime consultado pelo PÚBLICO.

Para os oficiais, o que se passou no primeiro dia da instrução, 4 de Setembro, é demonstrativo das suas conclusões. As circunstâncias em que decorreu a formação foram agravadas pelo esforço físico elevado e desgastante debaixo de calor extremo. Três instruendos perderam os sentidos e foram depois obrigados pelo capitão-médico a rastejar até à ambulância. Na enfermaria do Campo de Tiro de Alcochete chegam a estar 23 instruendos a soro, 11 deles foram mais tarde para o hospital. A Prova Zero, a primeira do curso e que dura habitualmente três dias seguidos, foi suspensa a meio da tarde. O furriel Hugo Abreu foi o último a ser retirado da instrução. Morreu às 21h45.

Entre estes oficiais estão um tenente-coronel médico que faz parte do Centro de Saúde Militar do Exército, em Coimbra, um major que integra o Centro de Psicologia Aplicada do Exército e um major da Direcção de Formação do Exército, em Évora. Este último, André Manuel Nunes Ribeiro fez parte, juntamente com o major Hugo Duarte Ferreira, da equipa que elaborou o relatório de inspecção técnica extraordinária, determinada pelo chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. No documento, concluído em Dezembro de 2016, a inspecção desaconselhava o racionamento de água

Aliás, o major Rui Miguel Braz Eusébio, do Centro de Psicologia Aplicada do Exército, considera “desadequado” o racionamento. “A sede não se pode treinar, logo é manifestamente desadequado o racionamento de água nas instruções”, disse.

Perda de água

Já o tenente-coronel Joaquim Dias Cardoso, médico no Centro de Saúde Militar, sublinhou que “face a exercícios tão intensos [como os realizados no primeiro dia da instrução e da Prova Zero], o corpo pode perder cerca de dois a três litros de água numa hora de exercício, com temperaturas acima dos 38 graus Celsius”. Na instrução, os recrutas só ingeriram 2,5 litros de água e as temperaturas atingiram os 41 graus Celsius.

O oficial salientou ainda que “os sinais de desidratação e outros sinais vitais devem ser monitorizados com equipamento apropriado” e que, se estes apresentarem “valores desajustados” e “não for possível reverter tal situação”, o doente deve ser retirado “de imediato”.

Por seu lado, o major do Estado-Maior do Exército Hugo Duarte Ferreira afirmou que o instruendo deve ter “acesso à livre ingestão de água, sendo manifestamente desaconselhado o racionamento de água por parte dos instrutores, pois as necessidades hídricas de cada instruendo não são as mesmas”.

Aos investigadores os oficiais sustentaram ainda que a restrição de água imposta pelos instrutores aos recrutas não devia ter acontecido. A instrução começou também sem um referencial de curso, ou seja, sem regras claras e limites definidos. Foi “inadequada e indesejável” a forma como decorreu a instrução, realçaram os oficiais aos investigadores do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa e da Polícia Judiciária Militar que estão a averiguar as mortes dos instruendos Hugo Abreu e Dylan da Silva, ocorridas a 4 e 10 de Setembro.

O major André Manuel Nunes Ribeiro, da Direcção de Formação do Exército, em Évora, sublinhou a ausência de referenciais do curso, as altas temperaturas, o elevado esforço físico e a falta de hidratação dos instruendos para sentenciar: “Uma formação ministrada nestas condições consubstancia uma prática manifestamente inadequada para cumprimento dos objectivos formativos.” 

Mas a falta de regras para o curso de Comandos não é alheia à actuação da Direcção de Formação, em Évora. Não existiam “referenciais de curso de Comandos aprovados” por estes terem sido enviados várias vezes, desde 2009, sem que fossem analisados por aquela direcção e porque, anos mais tarde, em 2013, os documentos relativos a uma nova metodologia de elaboração de referenciais não chegaram a ser aprovados na íntegra até o Curso 127 começar. Pode um curso começar sem regras? Não para o major Hugo Ferreira: a falta de referenciais do curso “não legitima qualquer instrução”.

O tenente-coronel do Estado-Maior do Exército Paulo Rodrigues Dias chegou a colocar em causa a gestão dos limites no contexto do que os recrutas foram obrigados a passar. No seu depoimento disse ter verificado um “débito grave de gestão de risco perante os factos ocorridos”.

Instruendos “motivados"

Além da falta de referenciais, e porque o início do Curso 127 foi antecipado para os primeiros dias de Setembro, os instrutores, equipas de apoio sanitário e logística tiveram menos tempo para se preparar relativamente aos cursos anteriores, nota o major André Manuel Ribeiro.

A falta de coordenação e as dificuldades na comunicação entre o apoio à instrução e a instrução e o apoio médico e logístico são também descritas nos depoimentos de alguns instrutores e membros das equipas de apoio nos processos de averiguações realizados internamente pelo Exército.

Ouvido pelos investigadores, o major Rui Miguel Eusébio destacou que “o nível motivacional dos instruendos do Curso 127, de acordo com os resultados das provas de avaliação e selecção” era inicialmente “bastante bom”. Mas, disse, “a supervisão do processo formativo” era “essencial” e era da “responsabilidade do comandante de companhia” e do director da prova, o tenente-coronel constituído arguido em Novembro.     

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