Ministério Público vai indiciar instrutores de todos os grupos do curso 127

Comandante de companhia de formação do curso 127 dos Comandos foi indiciado pelo crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física. O mesmo acontecerá com os quatros instrutores dos grupos nos quais não houve mortes mas feridos

Foto
Miguel Manso

No primeiro dia da instrução do curso 127 dos Comandos, a 4 de Setembro, todos os instruendos de um dos grupos foram obrigados a atirarem-se para um monte de silvas. Foi o castigo por não terem realizado o tiro como queria o instrutor. Os mais relutantes foram empurrados.

Um dos instruendos conta como “teve de tapar a face para que as silvas não lhe cortassem o globo ocular” ou como nalguns casos os recrutas foram obrigados pelos seus instrutores a tirar as mãos da cara, ficando com feridas e arranhões perto dos olhos.

“Quando dali saí, tinha partes do corpo em carne viva”, disse esta testemunha a 23 de Fevereiro, quando foi ouvida no âmbito do inquérito-crime às duas mortes do curso 127, liderado pela procuradora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) em colaboração com a Polícia Judiciária Militar (PJM).

Nesse depoimento, que consta do processo consultado pelo PÚBLICO, reconstitui também os momentos seguintes: os instrutores que o viram não reagiram nem chamaram a equipa médica. Em vez disso, quando pediu água não lha deram. Voltou a ser empurrado para as silvas ao pontapé. Os termómetros marcaram nesse dia 41 graus.

Os testemunhos juntos ao processo do inquérito-crime coincidem no essencial, quer se tratem de instruendos que terminaram o curso, desistiram ou foram eliminados; quer tenham sido elementos do grupo 1 (de graduados), ou dos restantes três (de soldados). Depois de o comandante de companhia do curso, um capitão, responsável por todos os instrutores, ter sido constituído arguido nesta segunda-feira, mais quatro instrutores vão sê-lo nos próximos dias. São dois alferes e dois sargentos, responsáveis pelos dois grupos de soldados do curso 127, nos quais, apesar de não ter havido mortos, como aconteceu nos grupos a que pertenciam Hugo Abreu e Dylan da Silva, se registaram feridos.

A investigação, iniciada em Setembro, tem agora dez arguidos: além deste capitão, que liderava a formação, cinco oficiais — um dos quais o capitão-médico —, dois sargentos e dois enfermeiros. Mas terá, em breve, 14.

O capitão, superior hierárquico de formação, não prestou declarações aos investigadores durante o interrogatório desta segunda-feira, disse ao PÚBLICO fonte ligada ao processo. Ficou com medida de termo de identidade e residência, indiciado pelo crime de abuso de autoridade por ofensas à integridade física, previsto no art.º 93 do Código de Justiça Militar, sobre todos os 67 instruendos.

“Vi muitos camaradas caírem”

Pelo menos um dos instruendos ouvidos nas últimas semanas, entre o fim de Fevereiro e o início de Março, afirmou aos investigadores que “o grupo dos graduados [a que pertencia Hugo Abreu] foi o mais maltratado”, por não terem dormido na noite antes da Prova Zero ou não terem almoçado. Mas o mesmo tipo de tratamento e castigo chegou a todos, por decisão dos encarregados e comandantes nos quatro grupos.

Num dos momentos dia, vários instruendos do terceiro grupo estavam prostrados, com vómitos e, nestas circunstâncias, foram obrigados a comer. Um foi castigado por vomitar, obrigado a ficar em posição de prancha (inclinado com os braços abertos e uma perna no ar), com o peso da farda e do armamento. Nessa posição, em frente ao grupo, foi esbofeteado várias vezes. Voltou a comer, e voltou a vomitar, conta um colega de instrução. Outro recorda: “Vi muitos camaradas a caírem no solo, ficando prostrados ao sol, sem lhes ser prestada qualquer assistência” a não ser dos próprios colegas de instrução que nalgumas circunstâncias eram prejudicados ou castigados por ajudarem os mais aflitos.

“Só passado muito tempo, estes que caíam no solo eram retirados do local da instrução e transportados para a tenda que servia de enfermaria.” E aí, lembra este instruendo que também para ali foi levado, “muitos estavam deitados no chão, um tinha um discurso sem nexo, outro estava a chorar e Dylan da Silva contorcia-se e tinha espasmos, Hugo Abreu gemia e ninguém lhe prestava atenção”.

A instrução foi interrompida às 16h30 e retomada no dia seguinte, 5 de Setembro, para os que estavam recuperados, com Ginástica Educativa, Técnicas de Progressão e uma marcha, antes de deixarem definitivamente o Campo de Tiro de Alcochete, nesse dia, para o Regimento na Carregueira.

Cuspir sangue e terra

Entre os que participaram na instrução desse dia, alguns deram entrada no hospital. Na manhã seguinte à morte de Hugo Abreu, uma das testemunhas dos investigadores conta que “cuspia sangue e terra, sentia-se exausto e com sede, e durante a marcha deixou de ver”. Foi então colocado numa ambulância, mas disso não se lembra. Nos meses que seguiram, procurou apoio psicológico. Passados seis meses, ainda faz fisioterapia.

No processo do inquérito-crime às mortes de Hugo Abreu e do soldado Dylan da Silva — que faleceu a 10 de Setembro, uma semana depois de Hugo, já no Hospital Curry Cabral, em Lisboa —, estão também os resultados de exames clínicos e diagnósticos médicos dos que foram internados no Hospital das Forças Armadas (HFAR). Os problemas clínicos e necessidade de assistência atingiram instruendos dos quatro grupos.

No serviço dos cuidados intensivos do HFAR deu entrada um recruta do 2.º grupo. Ali permaneceu quatro dias, ficando internado até ao final do mês, para ser submetido a hemodiálise. Teve alta hospitalar no dia 30, ficando ainda a recuperar da função renal e sob vigilância até pelo menos Dezembro do ano passado.

Outros instruendos dos quatro grupos sofreram de desmaios, vómitos, tremores, estavam prostrados ou deliravam. E foi nesse estado que deram entrada no Hospital das Forças Armadas.

Os mesmos relatórios clínicos mostram que não houve alterações nas funções neurológicas, cardiorrespiratórias ou renal, mas que pelo menos num caso o internamento nos cuidados intermédios foi necessário por alteração dos valores da função hepática, como aconteceu de forma mais grave com Dylan da Silva, que faleceu quando aguardava um transplante de fígado.

Sugerir correcção
Comentar