Trump tem um problema com a China e Taiwan é o seu trunfo

O novo Presidente dos EUA ameaça quebrar o consenso em torno de Taiwan e acusa a China de destruir a economia norte-americana. Pequim pede cautela.

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Jason Lee / Reuters

A coerência está longe de ser uma das principais características do Presidente eleito dos EUA, Donald Trump, cujas posições – leiam-se tweets – sobre a maioria dos assuntos já deram várias voltas de 180 graus, deixando jornalistas e analistas a tentar apanhar papéis – leiam-se tweets. Mas há um tema em que o magnata tem variado muito pouco: as relações com a China.

O mesmo homem que defende um apaziguamento em relação à Rússia, tem apresentado a China como um “rival” dos Estados Unidos, do qual se aproveita para fazer crescer a sua economia, e ameaçar a indústria e os empregos dos norte-americanos. As alterações climáticas, por exemplo, são, segundo Trump, uma invenção da China para baixar a produtividade das empresas norte-americanas.

Apesar de ainda não ocupar a Casa Branca, Trump está já a tomar decisões com potencial para abalar as relações entre as duas maiores potências mundiais. Na semana passada, foi divulgada uma chamada telefónica entre o Presidente eleito e a Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, e este fim-de-semana Trump sugeriu que está disposto a rever o princípio “uma China”, que tem regulado as relações entre Washington e Pequim nos últimos trinta anos. O Governo chinês manifestou “preocupações sérias” e o jornal estatal Global Times – que geralmente colmata as posições diplomáticas oficiais com declarações mais duras – comparou Trump a uma “criança ignorante”.

Trump é ainda um cidadão comum, cujos actos não o vinculam a qualquer política, mas o telefonema, associado ao discurso duro que tem tido em relação à China, preocupa Pequim. “O telefonema de Trump atinge Pequim mesmo nos olhos. Isto acontece numa altura em que as relações Pequim-Taipé estão no ponto mais baixo desde 2008 por causa da recusa do Governo do Partido Progressista Democrático [pró-independentista] de Tsai em reconhecer que a China e Taiwan são um só país”, diz o professor da Universidade Bucknell na Pensilvânia, Zhu Zhiqun, citado pelo South China Morning Post, de Hong Kong.

Nunca um Presidente eleito, ou em exercício, tinha tido uma conversa directa com o líder de Taiwan, desde que foram estabelecidas as relações diplomáticas entre os EUA e a China, em 1979. Na base está uma declaração conjunta em que é afirmado o princípio conhecido como “uma China”, em que é reconhecida uma única soberania sobre a totalidade do território chinês, incluindo Taiwan.

O status quo permite aos EUA manterem relações extra-oficiais com Taiwan, sem reconhecer como uma entidade independente, e dialogar com o Governo de Pequim. Para Taiwan, a linguagem vaga do acordo permite dizer-se como o legítimo soberano de “toda a China”, ao mesmo tempo que mantém as garantias de segurança dadas por Washington – e que incluem a venda de armas norte-americanas. A China beneficia com o reconhecimento de que Taiwan é um “assunto doméstico”, a ser resolvido no futuro.

Teste à China

É com este equilíbrio muito sensível que Trump vem interferir. Desde 1979 que o consenso entre presidentes de ambos os partidos é o de manter este status quo, que o Financial Times descreve como uma “hipocrisia construtiva”, e cuja vantagem tem sido a manutenção da paz entre o estreito de Taiwan. A China não irá encarar com ânimo leve qualquer mudança neste estado de coisas. Em 1995, o então Presidente Bill Clinton, convidou o líder taiwanês a fazer uma palestra na Universidade de Cornell – a única visita com carácter oficial de um dirigente máximo da ilha aos EUA desde 1979. Pequim respondeu com o lançamento de mísseis balísticos na direcção de Taiwan como forma de protesto.

O objectivo de Trump parece ser o de testar Pequim, em antecipação para aquilo que podem vir a ser as relações entre os dois países nos próximos anos. “Parece que na mente de Donald Trump, [Taiwan] é uma ferramenta útil para atingir o nervo mais sensível da China”, disse o director do Conselho de Estudos Estratégicos e Jogos Militares de Taiwan, Alexander Huang, citado pela Reuters. Henry Kissinger, o "artífice" por trás do estabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e a China, disse estar "muito impressionado com a reacção calma da liderança chinesa" à conversa telefónica, que diz demonstrar "uma determinação [de Pequim] para ver se um diálogo calmo pode vir a ser desenvolvido" com Trump.

Na mente de Trump estão sobretudo considerações económicas, e não geopolíticas, no que respeita à China. Durante a campanha presidencial, foram poucos os discursos em que Trump não tenha acusado a China de ser responsável pela deslocalização de grandes empresas e por “inundar” o mercado norte-americano de produtos de baixo custo. Uma das promessas que fez foi a de declarar a China como um “manipulador de moeda” e aplicar taxas de 45% a produtos chineses.

Um dos principais problemas na argumentação de Trump é simples: na verdade, a China tem valorizado a sua moeda face ao dólar. Durante muitos anos, Pequim desvalorizou de forma intencional o valor do yuan para baixar os preços das suas exportações – a tal “invasão” de produtos baratos denunciada por Trump. Mas desde 2005 que o Banco Central Chinês tem deixado a moeda flutuar livremente, o que tem levado a uma valorização quase contínua.

Os analistas avisam que embarcar numa “guerra comercial” com a China pode causar graves danos à economia norte-americana, cujo principal parceiro é precisamente a China. “A conversa de Trump de aumentar as tarifas é feita na esperança de aumentar o emprego na América. Mas há apenas uma probabilidade muito pequena de que essas indústrias de trabalho intensivo regressem aos EUA”, explica ao The Guardian Sun Sijun, presidente do Uptop Group, uma das maiores exportadoras de malas de viagem e calçado para o mercado norte-americano. “As indústrias de trabalho intensivo migraram para o Terceiro Mundo e não vão voltar à América.”

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