A relação ainda pode ser “especial”?

Obama aprendeu que os aliados europeus ainda valiam a pena, num sistema internacional em acentuada desordem. Vê hoje a saída do Reino Unido como profundamente negativa, mesmo que, nos últimos anos, tenha sido muito pouco “especial”.

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1. Foi Churchill quem cunhou, no seu célebre discurso de Fulton em 1946, a frase que hoje está nos cabeçalhos da imprensa britânica. Depois de ter ganho a guerra e perdido as eleições, o velho leão britânico antecipava ao lugar do seu país no mundo do pós-guerra ao lado dos Estados Unidos. Um ano mais tarde, em Zurique, defenderia a ideia dos Estados Unidos da Europa, que afastasse de vez a guerra entre as potências continentais, mas onde o seu país não teria lugar.

Churchill era um homem do Império. Para ele, o mundo anglo-saxónico era uma coisa à parte. No outro lado do Atlântico, Dean Acheson, na altura chefe do Departamento de Estado, dizia que o Reino Unido “perdeu um império e ainda não conseguiu encontrar um papel.” A “special relactionship” teve os seus maus e os seus bons momentos, mas sobreviveu. O Reino Unido depressa percebeu que o seu lugar era na Europa, mas teve de esperar que De Gaulle saísse de cena, para que a França deixasse de exercer o seu poder de veto contra o  “cavalo de Tróia” dos americanos.

Margaret Thatcher levou a relação especial, consolidada pela Guerra Fria, ainda mais longe, com a “revolução conservadora” que partilhou com Ronald Reagan e uma atitude mais conflituosa com Bruxelas, mas que nunca pôs em causa a presença na Comunidade Europeia. Quando, em 1990, foi derrotada pelos seus pares conservadores, uma das razões que pesou mais na sua destituição foi precisamente esse excesso de conflitualidade na frente europeia. Tony Blair, logo no início do seu mandato (1997) anunciou que queria o Reino Unido “no coração da Europa”. Mas, confrontado com o 11 de Setembro e a guerra no Iraque, não teve dúvidas sobre o lugar do seu país na linha de fractura que, entretanto, dividiu profundamente os aliados.

O líder do New Labour queria manter para o Reino Unido o papel de ponte insubstituível entre os dois lados do Atlântico. Apesar de tudo, a ponte não caiu. Obama ajudou a sarar as feridas abertas no Reino Unido pela aliança entre Bush e Blair. Mas nada impediu que uma nova vaga de antieuropeísmo voltasse a varrer a Grã-Bretanha ao ponto de o seu lugar na União estar hoje, como nunca esteve, em causa. Cameron queria o seu país não no coração mas na margem. Alimentou o fogo que hoje devora o seu partido, e ainda não sabe se consegue ou não reverter o jogo.

2. Diz Gavin Hewitt, na BBC, que o Presidente americano nunca gostou da expressão “special relationship”. A sua simpatia por Cameron não foi coisa fácil. Acabou por criar uma excelente relação com Merkel, consolidada na reacção ao expansionismo agressivo de Putin, e com o seu homólogo francês, aliado militar inestimável no Médio Oriente. A “doutrina Obama” assenta na ideia de que os americanos não podem carregar a segurança mundial sozinhos e que os seus aliados, especialmente os europeus, têm de partilhar o fardo da sua própria segurança, libertando a América para outros mares de onde vêm os grandes desafios do futuro. Foi aprendendo que os aliados europeus ainda valiam a pena, num sistema internacional em acentuada desordem. Vê hoje a saída do Reino Unido como profundamente negativa, mesmo que, nos últimos anos, tenha sido muito pouco “especial”.

Com a sua habitual franqueza, a diplomacia americana lembrou várias vezes a Londres que um orçamento da defesa inferior a 2 por cento era uma séria ameaça à relação entre os dois países. Outro ponto de conflito foi a decisão britânica de participar no capital no Banco de Investimento que a China criou para apoio às infra-estruturas regionais, apesar das advertências de Washington. São questões decisivas para a política norte-americana que um aliado “especial” deveria compreender.

Hoje, Obama inicia em Londres a primeira etapa do início da sua despedida europeia, valorizando de novo o velho compromisso com os britânicos. Disse à BBC que “ter o Reino Unido na União Europeia dá uma confiança muito maior na força da união transatlântica.” Citado pelo Guardian, afirma que o país que hoje visita ainda é “o melhor parceiro” pela sua capacidade de projectar poder a bem de um mundo mais seguro. Cameron agradece profundamente este apoio.

3. O Presidente americano começou por não perceber bem a Europa. Viu-a, ainda muito novo, numa viagem de jovens estudantes britânicos a África em que participou, com os seus blazers azuis e as suas calças com vinco. Mandou retirar da Sala Oval o busto de Churchill que Blair oferecera a Bush, porque ele simbolizava o colonialismo britânico de que o seu pai chegou a ser vítima. Cancelou uma cimeira entre os EUA e a União, em Madrid, porque a considerou inútil: sem agenda que valesse a pena e 28 líderes para cumprimentar. Hoje já sabe como a Europa funciona. De Londres segue para Hanôver onde se vai encontrar com Merkel, Cameron, Hollande e Renzi para acertar os ponteiros da pesada agenda internacional. Será um encontro entre velhos amigos, que aprendeu a compreender e a respeitar. Para todos e mesmo que as razões variem, o "Brexit" seria uma catástrofe.

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