Erdogan não vai a votos, mas as suas tampas de sanita entraram na campanha

No domingo, os turcos vão eleger o novo Parlamento e podem deixar o AKP, no poder desde 2002, sem maioria absoluta. Se o fizerem, impedem o polémico chefe de Estado de instituir o sistema presidencialista com que sonha.

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Erdogan nas escadarias do seu Palácio Branco Aden Altan/AFP

Os turcos estão preocupados com o aumento do desemprego e da inflação, depois de uma década de crescimento que chegou ao fim. Para o Presidente, Recep Tayyip Erdogan, não há nada a temer. Na sua visão, os projectos megalómanos – uma terceira ponte sobre o Bósforo, um novo aeroporto, canais de engenharias impossíveis a ligar o mar Negro ao de Mármara, uma nova mesquita em Istambul, centros comerciais e empreendimentos de luxo – não terão fim e isso dará trabalho e comida aos turcos.

A Turquia já é o maior produtor de cimento da Europa e há mais materiais envolvidos nesta febre de construção, da qual o país se tornou dependente. Enquanto houver espaço, o plano de Erdogan é mesmo continuar a construir.

Projectos como o seu novo palácio, um complexo com 1100 divisões que custou 490 milhões de euros e foi inaugurado em Outubro, erguido na colina do extremo ocidental de Ancara. Chama-se Ak Saray ou Palácio Branco e os habitantes têm dificuldade em ignorá-lo, principalmente à noite, quando se acendem as suas luzes brilhantes.

Erdogan não vai a votos no domingo – aliás, a Constituição obriga-o a manter-se neutro na campanha para as legislativas. Mas o que está em jogo é o seu futuro e ele tem aparecido em público duas vezes por dia. Vale tudo para conseguir votos para o seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, pós-islamistas). A oposição também não ignora que estas eleições são sobre o ex-primeiro, que, na verdade, controla o actual, Ahmet Davutoglu, a quem passou a pasta quando foi eleito Presidente, em Agosto.

Em campanha, fala-se muito e Erdogan não perde nenhuma deixa. Desta vez, foi o presidente do maior partido da oposição, o CHP (Partido Republicano do Povo, nacionalistas sociais-democratas), a iniciar uma controvérsia que não esperava ver chegar tão longe. “Senhores, em Ancara, houve palácios construídos, foram comprados aviões, Mercedes… tampas de sanita em ouro para as vossas casas de banho”, disse Kemal Kiliçdaroglu num comício.

Erdogan, como é habitual, dramatizou e prometeu demitir-se, se o rival for capaz de encontrar ouro em alguma das muitas sanitas do seu novo palácio. “Convido-o a fazer uma visita guiada… Se conseguir encontrar uma tampa de sanita em ouro em qualquer das casas de banho, deixo a presidência.”

Kiliçdaroglu não mordeu o isco e evitou voltar a referir-se ao assunto. Mas com Erdogan a parada é sempre a subir, estejam em causa suspeitas de corrupção contra si e os seus ministros, mortes de civis, incluindo adolescentes às mãos da polícia antimotim e às suas ordens, ou as suas alegadas tampas de sanita em ouro.

Palácios, ouro e euros
“Ei, Kiliçdaroglu! Quando é que visitaste essas casas de banho? Foste tu que as limpaste para descobrires que estavam cobertas de ouro?”, lançou o Presidente num discurso. Kiliçdaroglu resolveu encerrar o tópico, retorquindo que não tem “nenhum interesse em palácios” e denunciando, novamente, “o apetite de Erdogan por ouro, dólares e euros”.

Passo seguinte: o Presidente decidiu levar Kiliçdaroglu a tribunal, acusando-o de difamação e reclamando 34 mil euros de indemnização por danos morais. A queixa já foi entregue por um dos advogados do chefe de Estado.

E, agora sim, a campanha já não é só sobre Erdogan, também é sobre se no seu palácio há ou não tampas de sanita em ouro. Era escusado, quando na ida às urnas se decide o futuro da Turquia.

O AKP vai continuar a ser o partido mais votado. Mesmo com os casos de corrupção que envolvem altos dirigentes, mesmo com o movimento nascido dos protestos de Gezi, há dois anos, quando uma concentração para evitar o derrube de um pequeno parque, um dos últimos espaços verdes de Istambul, se transformou numa vaga de manifestações que levaram mais de três milhões de pessoas à rua em todo o país.

Partido pró-curdo
A questão é saber quantos deputados vai eleger, se chega aos dois terços ou sequer à maioria. Com 367 dos 550 deputados, o AKP pode aprovar uma mudança na Constituição que reforce os poderes do Presidente. Se o partido que governa desde 2002 obtiver 330 lugares, pode votar as alterações, mas tem de as sumbeter a referendo. Tudo é possível: sob a liderança de Erdogan, o AKP venceu sete eleições gerais, municipais e presidenciais consecutivas, mais dois referendos. Mas se há quatro anos obteve uns confortáveis 50%, desta vez as sondagens antecipam que ficará perto dos 40%.

A grande incógnita é o resultado do Partido Democrático do Povo (HDP), a formação pró-curda que atrai cada vez mais descontentes, turcos que não se revêem nem no AKP, nem na oposição tradicional de direita, do CHP ao mais extremista MHP (Partido do Movimento Nacionalista). Até agora, os políticos pró-curdos concorriam como independentes. Como se apresentam unidos no HDP precisam de alcançar 10%, o mínimo que a Constituição prevê para um partido nacional entrar no Parlamento.

Se o HDP o conseguir, impede o AKP de chegar à maioria. E então Erdogan terá de se preocupar. É que em causa fica todo o seu projecto para uma “Nova Turquia”, o país que ele quer mudar à sua imagem, o legado que quer deixar e no qual julgou fazer sentido o seu novo Palácio Branco, com ou sem tampas de sanita em ouro.

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