Dança da tribo

Um Castelo em Itália não trai, em favor do plot, as possibilidades do jogo entre uma tribo de personagens e actores. O espectador que se aguente na dança.

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Valeria Bruno-Tedeschi reconstitui a sua família (Louis Garrel, o ex-companheiro, incluído) para fazer terapia, não psicanálise

Um gosto pelo desequilíbrio, como possibilidade de dança, de um pas-de-deux ou de todo um grupo com um pé no ar, e a impossibilidade de apaziguamento como única hipótese de poder continuar — o que em alguns espectadores pode provocar ranger de dentes, isto do número da “mulher sob influência”. Eis Valeria Bruni-Tedeschi, actriz assim vista pelos outros (logo em As pessoas normais nao têm nada de especial, 1992, de Laurence Ferreira Barbosa, peça essencial da persona Valeria, que nesse ano receberia um César para a melhor esperança feminina) e que fantasia com a sua biografia nos filmes que realiza.

Em Um Castelo em Itália, terceira longa-metragem depois da estreia como realizadora, em 2003, com Il est plus facile pour un chameau...,  Valeria levanta o pé a ver se tudo cai. Para poder acontecer algo, ela que se estica sempre até ao burlesco. O filme é um carnaval, por isso peça melancólica, que Valeria arrisca com a sua habitual coragem de habitar a vertigem, o seu não-medo do ridículo, e com dados da sua autobiografia: a origem italiana, a fuga de Turim quando a família, pai, mãe, dois irmãos, Carla Bruni e Virginio, foi ameaçada pelas Brigadas Vermelhas, o doce exílio em França e uma espécie de culpabilidade lancinante de pobre menina rica que a coloca em fuga para a tal dança do desequilíbrio.

Para o filme, convocou mesmo a mãe, Marisa Borini, o ex-companheiro, Louis Garrel, e entregou a Filippo Timi a personagem do irmão a morrer de sida (como aconteceu na vida real a Virginio,o irmão de Valeria). E os Bruni-Tedeschi aqui chamam-se Rossi-Levi. Mas é interessante ouvi-la falar de Um Castelo em Itália da forma que o fez em Cannes 2013: havendo biografia, disse, nao ha psicanálise, há apenas terapia, que a ajuda a viver, que a ajuda a trabalhar e, mais importante do que tudo, que pode desencadear tráficos com o imaginário. Foi nessa conferência de imprensa, aliás, que Valeria se assumiu adepta das possibilidades do desequilíbrio, lembrando se dos seus primeiros passos como aprendiz de actriz, como nada acontecia quando os actores estavam com os pés no chao e como a emoção finalmente irrompia na aula a partir do momento em que alguém levantava um pé. 

O decisivo em Um Castelo em Itália é mesmo isso, a sua fragilidade. É essa a sua força. não simular, em favor do plot, qualquer redençao para as personagens, nao trair as possibilidades de jogo entre uma tribo, que é de personagens e que tambem é de actores, estar sempre em fuga com o imaginário (como, à sua maneira, estavam o Tournée de Mathieu Amalric e a sua tribo). Nao é seguramente tempo, hoje, de filmes assim que não vão atrás do espectador para o seduzir, para se entregarem de bandeja, e que estao sempre a escapar-se-lhe. Pode-se experimentar o desconforto perante o que parece derivativo sempre dois palmos acima do chão. Mas vamo-nos aguentar, dançar e talvez cair.

 

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