A segunda revolução digital

Se a ideia de Mercado Único Digital parece ser apoiada pela grande maioria dos Estados-membros, os meios pelos quais realizá-lo são menos consensuais, especialmente com relação às leis de direitos de autor.

Há cerca de dois anos, escrevia no PÚBLICO que a reforma do direito de autor era um tema importante da agenda política e dos meios de comunicação social e que interessaria a todos enquanto consumidores de "conteúdos culturais" (livros, revistas, filmes, música, software, jogos, fotografias, etc.).

Decorridos dois anos, tal reforma iniciada pelo uso crescente da Internet e dos dispositivos móveis, e exponenciada pelo uso da computação em nuvem, está a atingir o auge da sua importância na discussão política europeia.

Em 2013 falava-se, assim, do estudo realizado pelo professor Hargreaves no Reino Unido que apontava para a necessidade de “modernizar” o direito de autor, de se alterar o sistema, de forma a adaptá-lo e moldá-lo às necessidades do mundo digital, harmonizando as leis de direito de autor na Europa e permitindo que o mercado digital legal pudesse aumentar a sua oferta, diminuindo a pirataria e recuperando algum valor para todos os intervenientes no processo de criação desses conteúdos culturais.

Chegados a 2015, a Comissão Europeia, reconhecendo o potencial da economia digital, introduziu a Agenda Digital e definiu a criação do referido Mercado Único Digital como um dos seus “projectos emblemáticos para os próximos cinco anos” integrado na Estratégia Europa 2020 e visando essencialmente a supressão das barreiras nacionais às transacções em linha no mercado europeu, ou seja, atingir no mundo em linha as liberdade que foram alcançadas no mundo físico (fora de linha) e promover o crescimento e o emprego no continente europeu.

Já em 2010 Joaquín Almunia, então comissário responsável pela Concorrência, afirmava que “a distribuição de conteúdo online em toda a União Europeia é cara, difícil e primitiva, se comparada com a tecnologia que temos. Em particular, temos de abordar a fragmentação do mercado para a gestão de direitos em linha, o que prejudica os consumidores, os detentores de direitos e todos os outros no meio". Alguns apontam como exemplos dessa fragmentação a implementação demorada na Europa de serviços como o Spotify e Netflix ou as diferentes ofertas de lojas online como a da Amazon, de um país para outro, ou ainda casos como os serviços Pandora e Yahoo! Music, que optaram por sair do mercado da União Europeia, devido à complexidade do sistema de licenciamento.

Andrus Ansip, actual vice-presidente para o Mercado Único Digital, anunciou a 25 de Março de 2015 que a estratégia da União Europeia será dividida em três áreas e que serão publicadas propostas mais concretas a 6 de Maio, as quais terão depois ainda de ser aprovadas pelos governos nacionais, bem como o Parlamento Europeu. Se a ideia de Mercado Único Digital parece ser uma ideia apoiada pela grande maioria dos Estados-membros, os meios pelos quais realizá-lo são menos consensuais, especialmente com relação às leis de direitos de autor.

A primeira dessas áreas será melhorar o acesso dos consumidores e das empresas aos produtos e serviços digitais. Tal incluirá facilitar o comércio electrónico transfronteiras; lutar contra os bloqueios geográficos; modernizar a legislação em matéria de direitos de autor de modo a garantir o justo equilíbrio entre os interesses dos criadores e os dos utilizadores e consumidores; e simplificar os regimes do IVA.

A segunda dessas áreas será criar um ambiente propício ao desenvolvimento das redes e dos serviços digitais. Todos os serviços, aplicações e conteúdos digitais dependem de uma Internet com elevada velocidade de transmissão de dados. Para promover os investimentos nas infra-estruturas, a Comissão Europeia determinou que irá rever as actuais regras em matéria de telecomunicações e meios de comunicação social, de modo a adequá-las aos novos desafios digitais; adoptar uma abordagem europeia em matéria de gestão do espectro; e investigar o papel cada vez mais importante desempenhado pelas plataformas em linha (motores de pesquisa, meios de comunicação social, lojas de aplicações, etc.) no florescimento da economia baseada na Internet.  

Tal compreenderá procurar formas de reforçar a confiança nos serviços em linha, aumentando a sua transparência; facilitar a rápida eliminação de conteúdos ilegais; e adoptar rapidamente o regulamento relativo à protecção dos dados.

A terceira e última das áreas a desenvolver será a criação de uma economia e uma sociedade digitais à escala europeia com potencial de crescimento de longo prazo. Tal será implementado ajudando todos os sectores industriais na integração das novas tecnologias; garantindo a interoperabilidade das novas tecnologias; permitindo à indústria e à sociedade tirar o máximo proveito da economia de dados (“big data”) resolvendo importantes desafios, que vão desde a propriedade à protecção dos dados, passando pela criação de normas para poder tirar partido do seu potencial, ou pela computação em nuvem e o reforço das competências digitais para os cidadãos aproveitarem as oportunidades oferecidas pela Internet e aumentarem as hipóteses de conseguir um emprego.

Ainda uma notícia publicada esta última semana pelo The Wall Street Journal levanta alguma suspeita sobre as “intenções” ou os “visados” por esta reforma, fazendo referência a um documento interno elaborado por funcionários para o comissário Günther Oettinger no qual se propõe a criação de um "novo regulador poderoso para supervisionar um grupo de empresas de Internet, principalmente baseadas nos Estados Unidos”. O domínio de empresas como a Google seria o principal motor por trás das propostas e a Comissão estará, com esta reforma, a procurar criar condições mediante as quais as empresas europeias possam competir melhor com as gigantes norte-americanas, dando outro enquadramento à recente decisão de investigação formal às práticas da Google por supostamente abusar da sua posição dominante para pesquisas online.

Advogado, membro da sociedade PBBR e especialista em Direito da Propriedade Intelectual

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