A irresistível devassa do privado

A Ilha da Infância, terceiro volume de A Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, é mais uma compulsiva digressão pelo banal e pelo interdito que transforma cada leitor em cúmplice e imagem reflectida num espelho tão incómodo como belo.

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Karl Ove Knausgård: escutar o “ouvido absoluto da memória” Bernd von Jutrczenka/dpa/Corbis

Uma das afirmações mais repetidas para falar da obra do escritor norueguês Karl Ove Knausgård (Oslo, 1968) é a de que representa um dos mais originais e arriscados projectos literários. A Minha Luta, iniciada com a publicação de A Morte do Pai (Relógio d’Água, 2014), é uma memória ficcionada em seis volumes — um total de 3500 páginas na versão original -- que desafia muitas regras — éticas, inclusive –, narrada num tom realista e onde o seu autor se expõe, e aos que o rodeiam, sem qualquer espécie de complacência. A sua única preocupação parece ser a de escutar o que chama de “ouvido absoluto da memória”, sabendo que esse absoluto é feito de muitas derivas, inexactidões factuais, excessos, invenção, num processo que é em simultâneo de grande exibição e de reconstituição-reconstrução pessoal.

A luta de Karl Ove Knausgård é a do confronto com a sua própria existência que, comparada com tantas outras, é de algum modo banal, e de, no fim, resistir. O seu maior feito até aos 40 anos, quando começou a escrever-se a um ritmo de 20 páginas diárias, foi a empreitada de se olhar de modo obsessivo e confrontar-se com essa sua banalidade. Os seis volumes de A Minha Luta são o resultado desse cotejo onde cada leitor, homem ou mulher, pode encontrar pontos de contacto e uma cumplicidade que explica muito do sucesso que a obra está a alcançar desde que começou a ser editada na Noruega, em 2009, e transformou o seu autor num dos nomes mais comentados da literatura mundial.

A Ilha da Infância, terceiro volume de A Minha Luta, conheceu recentemente edição em Portugal, depois de A Morte do Pai, o primeiro, e de Um Homem Apaixonado, o segundo, está a acontecer por cá algo semelhante ao que se passa um pouco por todos os países onde os livros estão ser traduzidos: os leitores dividem-se entre os que se deixam arrebatar e os que sentem aversão. A meia medida, ou o gosto morno, não se ajusta a A Minha Luta.

Estamos na infância de Karl Ove - ou melhor, de um rapaz que o adulto Karl Ove recria -- quando se muda de Oslo com os pais e o irmão mais velho para a ilha de Tromøya, no sul da Noruega. Foi em 1969, ainda não tinha um ano. Era uma ilha em construção, como a sua família, um pai professor de norueguês e uma mãe enfermeira, os dois com pouco mais de vinte anos. O pequeno Karl Ove via-se por comparação, entre o seu mundo íntimo, doméstico, privado e, por exemplo, o dos operários. “A mim, o que me fascinava nos operários — além da mudança que a sua presença introduzia na paisagem — eram os sinais da sua vida privada que os acompanhavam. Esse momento, por exemplo, em que tiravam um pente do bolso do fato-macaco cor de laranja ou das calças azuis largas e amarrotadas e penteavam o cabelo…” É um território que cruza o escutar por detrás das portas e o ver através das cortinas com a sensação do mergulho em águas profundas, estar numa colina a olhar o mar, entrar num quarto ou tentar entender um país no seu tempo, uma atmosfera que tem como auxiliares para essa compreensão, a música, a literatura, o deporto ou o simples preparar de uma refeição, todas etapas de uma rotina em que cada ser humano se constrói e define. Os mais escatológicos e os sublimes, numa linguagem que parece ajustar-se a isso, ora descuidada — ou aparentemente descuidada –, ora de uma beleza comovente. Como se se sentisse uma respiração interior que vai do êxtase ao arrastar que acompanha o tédio. E sempre a necessidade de se ver em relação a. Ao outro, ao mundo. E não esquecer uma lição de vida para, ao evocá-la, corromper.

Como esta. O dia em que a professora chamou de parte Karl Ove, então com seis anos, para o advertir. “Não podemos dizer tudo o que sabemos das outras pessoas.” No meio da classe, ele dissera que o pai de uma colega tinha chegado bêbado a casa na noite anterior. “Há uma coisa que se chama vida privada — continuou ela — sabes o que é a vida privada?” Ele não sabia. “É tudo o que se passa nas nossas casas, na tua, na minha, na de toda a gente. Nem sempre é bom contar às outras pessoas aquilo que vimos noutras casas. Estás a compreender?” A resposta foi um gesto. “Fiz que sim com a cabeça.”

A Minha Luta é o resultado de contar tudo o que viu — sem muito respeito pela cronologia, já que a memória se apresenta fragmentada - não apenas na sua casa mas em todas as casas de todas as pessoas que Karl Ove Knausgård encontrou na sua vida. Visto assim, pode soar a devassa. Talvez seja, e isso fará então de cada um dos seus leitores um voyeur. Talvez sim. Haverá isso tudo, mas não é só isso. Parte da família e dos amigos rompeu com o escritor neste processo que é o de mergulhar — e a metáfora é ajustada a uma das actividades que a criança que aqui se conhece mais admira — ao seu próprio íntimo, custasse o que custasse. Podia ter-lhe custado a destruição. Ele diz que se salvou neste desafio obsessivo. E cada leitor — o que embarca com ele neste risco — sente-se cúmplice dessa intimidade, uma conquista do escritor que, cruzando memória e ficção, também se constrói como personagem, num ‘eu’ real e ficcional, um Knausgård autor e protagonista, em que muitas vezes paira apenas como uma espécie de sombra de um outro ‘eu’ que é o leitor a ler-se a si mesmo.

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