“Um dia, a responsabilidade social das empresas será obrigatória, não voluntária”

A Duorum produz vinho de qualidade mas reconhece que o seu projecto de protecção de aves em vias de extinção a ajudou a conquistar mercados exigentes. Clientes e fornecedores são cada vez mais decisivos para as empresas serem socialmente responsáveis. Não só na agro-indústria.

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A Quinta de Castelo Melhor tem uma área total de 160 hectares Nélson Garrido

“Um dia, a responsabilidade social das empresas será obrigatória, não voluntária”, prognostica José Maria Soares Franco que fundou, com João Portugal Ramos – uma parceria de enólogos -, a Duorum Vinhos, um investimento considerado exemplar no Alto Douro Vinhateiro.

Satisfeito com o rumo da Duorum, que arrancou há sete anos e tem hoje uma forte componente exportadora e notoriedade no mercado nacional e internacional, o enólogo reconhece que uma parte importante do sucesso da empresa se deve à decisão, desde o início, de desenvolverem voluntariamente e de forma integrada um projecto de biodiversidade em viticultura da zona do vale do Douro onde se encontram. “[O trabalho de preservação ambiental] é muito importante para nós e que torna o nosso negócio sustentável”, defende o empresário.

A par da criação da Quinta de Castelo Melhor, com uma área total de 160 hectares, dos quais hoje 45 hectares com vinha plantada – serão 90 hectares até 2018 – para produção de vinho de qualidade, os dois empresários quiseram desenvolver desde o início um projecto ambiental que valorizasse o facto de uma parte importante da propriedade fazer parte das Rede Natura e Rede Ecológica Nacional (REN). O que apresentaram então às autoridades era um projecto agrícola e ambiental integrado.

O objectivo era que o desenvolvimento do projecto agrícola contribuísse também para a preservação ambiental da zona em particular de espécies de aves em risco de extinção, cuja presença ainda era registada: eram o caso chasco-preto, quase desaparecido e identificado historicamente como o pássaro do vinho do Porto e que nidifica nas cavidades rochosas dos penhascos de xisto das margens do Douro. Outras espécies a carecerem de cuidado eram também a águia de Bonelli, o britango, a cegonha-preta, a águia-real e o grifo.

Soares Franco tem hoje resultados animadores para mostrar, a começar pelo caso mais especial do chasco-preto, embora sublinhe que “todas as espécies são motivo de preocupação”. Quando a Duorum arrancou, contava-se apenas um ninho de chasco-preto. Hoje são três ninhos, o que significa três casais, para um total de 24 casais activos identificados em Portugal. Um casal de cegonha-preta nidificou no ano passado na quinta. As aves de rapina, para além da águia de Bonelli e do grifo, continuam a sobrevoar a quinta, provavelmente com ninhos próximos. Soares Franco faz um comentário animado ao resultado da monitorização da avifauna, com relatórios anuais entregues ao ICNB, e que apontam para um crescimento especial da fauna: “as coisas funcionam”.

Primeiras dificuldades
Apesar da decisão voluntária e do estudo de impacto ambiental elaborado desde a génese do projecto, recorda que o início “teve algumas dificuldades, era complexo”. A legislação ambiental era nova, os contactos para o licenciamento desdobravam-se entre a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, o então Instituto de Conservação da Natureza, a Administração da Região Hidrográfica, a direcção-regional de Agricultura, os institutos do Vinho do Douro e Porto, sem contar com os processos de âmbito autárquico. O que sentiram no arranque eram “dificuldades em identificar os interlocutores”.

Até que, a dada altura, a “CCDR assumiu o papel de ligação entre as várias entidades, fez várias conferências de trabalho e isso ajudou muito, facilitou-nos a abertura ao diálogo com os outros organismos”, conta o enólogo, sublinhando que a posição da CCDR “foi fundamental”, incluindo a sua delegação de Vila Real. O balanço que faz dessa fase é que “quando o processo terminou, tudo estava mais simplificado, houve um progresso espectacular na adaptação à nova legislação”, admitindo que as próprias entidades públicas também aprenderam com a nova legislação. No âmbito da CCDR, destaca ainda o trabalho da então Estrutura de Missão para o Douro e frisa que os requisitos “não foram facilitados, as respostas é que se tornaram mais rápidas”.

Por causa do trabalho ambiental, a Duorum foi aceite na plataforma europeia Business & Biodiversity (é a única vínicola do Douro) e tem recebido prémios com projecção externa de empreendedorismo, de inovação e de reconhecimento da qualidade do vinho que produz.

E é a falar dos prémios que Soares Franco volta à fronteira entre a obrigação e o voluntariado na responsabilidade social, com a certeza que será cada vez mais ténue, um facto que reconhece que até desconhecia de início. “Para entrar nos mercados mais exigentes, as empresas são alvo de selecção e os critérios – com pontuação - dão muita atenção à implicação social e ambiental das empresas”. Reconhece que a preocupação ambiental e a forma como a integrou no seu próprio negócio foi um “factor fortíssimo” para a Duorum entrar na Escandinávia, nos EUA e no Canadá, onde a quota da empresa “está a crescer muito”.

O que a Duorum descobriu foi que a sua implicação ambiental e social, ao mesmo tempo que dava resposta a uma legislação exigente, deu-lhe competitividade. Tornou-se “um factor de competitividade, logo, uma obrigação” e o seu co-fundador está convicto de que “um dia, a responsabilidade social das empresas será uma obrigação” para todos.

A aposta de investimento em vinhos de qualidade e pássaros raros resultou, por exemplo, na produção da marca O.Leucura, o vinho que evoca o nome científico do chasco-preto, Oenanthe leucura, e tem gravado em cada garrafa o selo da iniciativa europeia Business & Biodiversity.

O que quer a UE
A “obrigação” que o co-fundador da Duorum pressente como inevitável para as empresas se distinguirem no futuro também está a ser gradualmente anunciada pela União Europeia. No início da década passada, Bruxelas definiu a responsabilidade social empresarial como um “conceito fundamental criado para ajudar as empresas a integrar voluntariamente preocupações sociais e ecológicas nas suas actividades de negócio e relações com stakeholders”. Um conceito que devia combinar “sucesso económico com o beneficío para a sociedade e para o ambiente”, indo “além das disposições legais” e possibilitando “um lucro económico e social adicional”.

Depois de anos de muitas orientações e recomendações, entende que é agora altura de passar à fase de resoluções. A estratégia europeia de responsabilidade empresarial, que arrancou em 2011 e termina este ano, incitava os países a fazerem planos de acção nacional de responsabilidade social, explica Anabela Ribeiro, da consultora Pedra Base, que trabalha nesta área há 10 anos. “Este trabalho está a ser feito [pelo Governo português]”, afirma a mesma especialista. Da parte da União Europeia, esperam-se resoluções que definam metas a cumprir pelos países, o que fará com que a UE passe a ter uma política pública para a responsabilidade social das empresas.

O plano português está a ser feito pelo Ministério da Economia, através da Direcção-Geral das Actividades Económicas. O PÚBLICO contactou o ministério mas não foi possível resposta até à hora de fecho da edição.

Com regras para cumprir no futuro, a responsabilidade social tende a ser parte integrante e consciente da actividade empresarial. Celina Gil, responsável pela plataforma informal de Responsabilidade Social das Organizações (RSO), coordenada pelo IAPMEI, e há vários anos ligada a esta área narra dois casos verídicos, não identificados, que ilustram como as mudanças têm ocorrido em Portugal até agora.

Uma empresa portuguesa de cerâmica com um contrato de fornecimento para o mercado nórdico recebeu um destes dias a visita dos seus clientes. Os directores começaram a elencar as certificações internacionais detidas, mas os visitantes só queriam visitar a fábrica. No final deixaram dois reparos. Havia uma porta que abria para fora e um varandim sem protecção. Para um mercado exigente como o nórdico, não era um problema de decoração, mas de responsabilidade social da empresa, e as falhas básicas de segurança dos trabalhadores apontadas foram reparadas. Para Celina Gil, “é o que acontece com os mercados exigentes”, sob pena de se perderem negócios.

Outras empresas, porém, têm práticas de responsabilidade social e não sabem – por isso, não as valorizam. Uma empresa têxtil do Norte passou a ter médico no trabalho às terças. O absentismo baixou e os trabalhadores deixaram de ver esse período descontado no seu salário, por lei. Foram os consultores que identificaram esta boa prática de responsabilidade social numa visita a essa empresa, mas que apenas passava a ser uma prática visível desde que “passasse a integrar a estratégia da empresa” e não fosse apenas resultado da vontade do empresário. “É esta a diferença”, sublinha.

Anabela Ribeiro distingue no mercado dois grandes tipos de empresas. “Há muitas empresas familiares em Portugal, de todos os tamanhos, que tiveram sempre um enorme sentido de responsabilidade social, só que o termo não era esse. Era apoio social, benefício, e não era por fora da lei, mas porque acreditavam que era preciso ajudar as pessoas. Está lá no ADN delas”.

O outro tipo, “de organizações mais recentes”, segue práticas de responsabilidade social “não tanto porque acreditem mas por requisitos dos clientes ou fornecedores e têm que lhes demonstrar que têm essas práticas”. E essas práticas são um pouco de tudo: direitos dos trabalhadores, trabalho infantil, segurança no trabalho, igualdade de género, entre outras.

O pós-crise e a austeridade não permitiram às empresas baixar a guarda nesta matéria. “Antes pelo contrário”, diz Anabela Ribeiro. “Por causa da escassez de recursos em austeridade, as empresas cortaram muitas despesas, o que fez com que os grandes clientes redobrassem a sua atenção, temendo que a responsabilidade social dos seus fornecedores portugueses fosse descurada. Hoje, em muitos casos, pedem mais provas do que no passado”.

Os especialistas sublinham consensualmente que o quadro português é semelhante ao que se vive pela Europa.

Do Douro a Bucelas
Contudo, a responsabilidade não pode estar apenas do lado das empresas, na opinião de Ricardo Jorge, da Quociente-Razão, consultora formada por dois universitários e que começou a investigar recentemente o que podem fazer as administrações locais, por exemplo, para que sejam “territórios socialmente responsáveis” e, com isso, apoiarem os empreendedores em vez de lhes complicar a vida.

O trabalho cruza a experiência do Douro, sobretudo através da Duorum, com a da região de Bucelas-Colares, cuja produção a Câmara de Loures quer revitalizar. “É um caso muito interessante. Estamos a ver que problemas cada uma das zonas coloca aos seus empresários, apesar da distância entre elas e da distância destas em relação a Lisboa. Se calhar, vamos encontrar pontos comuns”, admite o investigador. O objectivo é “ver que agenda pode ser definida para uma resolução integrada, independentemente do sítio”. Seja no Douro ou em Bucelas-Colares.

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