Pele de peixe já serve para forrar móveis ou fazer sapatos

A criação de crocodilos foi o ponto de partida para uma ideia fora do comum. A Soguima, empresa de ultracongelados de produtos de pesca, começou a aproveitar a pele do peixe para não deitar nada fora.

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Cerca de 80% do negócio da Soguima é a venda de bacalhau demolhado e ultracongelado Adriano Miranda
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A fábrica da Soguima, na Zona Industrial de Vila Nova de Sande, a cerca de oito quilómetros de Guimarães, está em revolução. Picam-se paredes, há vigas enormes a romper o céu e um buraco escavado no chão. As obras de ampliação da unidade custaram 11 milhões de euros e vão duplicar a actual capacidade de produção, de 22 toneladas por dia de produto acabado, 80% bacalhau demolhado e ultracongelado. A inauguração está para breve mas, por estes dias, há outro negócio a nascer nas paredes da empresa, dona da marca Reymar e fundada há 25 anos pelos irmãos António Guimarães e Manuel Guimarães: pele de peixe, sem cheiro, e com uma resistência semelhante ao couro que pode ser usada na indústria do calçado, móveis ou acessórios.

Aos produtos de pesca congelados, que também incluem o polvo ou a petinga, a Soguima já tinha juntado as sobremesas e, mais recentemente, as refeições prontas, usando a sua matéria-prima principal. Os pastéis de bacalhau ou as patanistas que saem da fábrica aproveitam o bacalhau que sobra dos cortes precisos de lombos, filetes ou postas, vendidos prontos a cozinhar (a empresa não vende bacalhau seco salgado) em Portugal e mais de 22 países, com destaque para o Brasil, o maior cliente. E foi o aproveitamento de todos os milímetros de matéria-prima que despertou a curiosidade de Daniel Guimarães, um dos responsáveis pelo departamento de Investigação e Desenvolvimento, juntamente com o primo, Emanuel Guimarães. Porque não aproveitar melhor a pele do peixe, usada apenas para a alimentação animal e com baixo valor acrescentado?

Mas para contar esta história é preciso ir a Moçambique, até à criação de crocodilos que a Soguima detém naquele país. Há 16 anos, a empresa apostou na transformação de pescado com uma fábrica local. Mais tarde, para armazenar produtos, comprou o matadouro da Beira e as suas câmaras frigoríficas. Para rentabilizar o investimento dedicou-se à pecuária e cria, actualmente, 2500 animais.

“Todas as matérias-primas têm de ser usadas da melhor forma e tivemos necessidade de aproveitar melhor os animais. Havia resíduos do abate que eram desperdiçados como o couro, as vísceras e partes da carcaça e, por isso, investimos na criação de crocodilos que são alimentados com estes sub-produtos”, conta Daniel Guimarães. Hoje a Soguima cria 27 mil destes répteis, vende a carne para os países vizinhos da África do Sul e Zimbabué e a pele para a indústria de marroquinaria de luxo. “Ficámos com o conhecimento do tratamento da pele, que é vendida ainda num estado salgado verde. Este ano a intenção é vender o produto acabado, pronto a ser usado pelo cliente”, continua.

Daniel Guimarães, 28 anos e a fazer mestrado em medicina veterinária, começou a pensar na experiência com a pele de crocodilo. “E se pudéssemos fazer o mesmo com peixe?”, questionou. “Quando trabalhamos salmão sem pele ou espinha a pele é aproveitada para nutrição animal”, mas com baixo valor acrescentado, descreve. Representa 2% do peso do peixe e é um desperdício que, para Daniel Guimarães, tinha potencial para ser melhor aproveitado.

Um dia, fez a experiência. “Peguei numa pele de bacalhau, coloquei-a num cartão e pus a secar. Ficou com uma consistência fantástica. Comecei, depois a hidrata-la e a corá-la e não perdia a cor”, descreve. A indústria dos curtumes instalada nas imediações da Soguima em Guimarães ajudou a terminar o processo e a resolver o “problema do cheiro”. “Foi ultrapassado. Fizemos o curtume normal que se faria a uma pele de vaca, o processo é semelhante”, continua Daniel. A resistência da pele de peixe foi testada e aprovada, tal como a forma de retirar as escamas.

A novidade foi apresentada o ano passado, na 41ª edição da Capital do Móvel em Paços de Ferreira. Algumas empresas do sector aceitaram o desafio e decidiram aplicar o novo material em móveis, forrar cadeiras ou abat-jours. A indústria do calçado também já começou a testar, tal como a da moda, com malas, bolsas e acessórios que usam pele de vários tipos de peixe, tingida de cores. E até uma jovem empresa de óptica (a Masq eyewear) utilizou o produto para uma colecção de óculos de sol.

Ao toque, a pele não é diferente da de uma cobra. E o processo de curtume dá-lhe a consistência típica aveludada. Bacalhau, salmão, carpa, truta e peixe–lobo, todos servem para  compor mantas com 50 centímetros de altura e 60 de largura. Em breve serão usadas pele de atum, espadarte e tintureira. Os preços rondam os oito euros por cada pele inteira de salmão, por exemplo.

“Não temos de matar animais para ter a pele. E outra grande vantagem é que a pesca é muito sazonal. Com este projecto podemos contornar esse factor”, diz Daniel Guimarães. A expansão da área industrial, para um total de 12 mil metros quadrados, também vai permitir fazer todo o processo internamente. “Conseguimos, assim, aproveitar quase toda a pele do peixe da fábrica”, continua o gestor, acrescentando que está em curso uma parceria com a Universidade do Minho para desenvolver a aplicação da pele a tijoleira.

Com os investimentos em curso, na ampliação da fábrica e no novo negócio da pele, a Soguima (com 100 trabalhadores) espera vender 40 milhões de euros em 2016. O ano passado facturou cerca de 20 milhões e prevê chegar aos 25 milhões este ano. 

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