Decisão do tribunal europeu clarifica deslocações como tempo de trabalho

Especialistas antecipam que tribunais portugueses tomem decisões que favoreçam trabalhadores sem local de trabalho fixo e que não estão abrangidos por contratos colectivos.

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A noção que a Europa e os seus poderes revelam ter de cultura limita-se aos números do consumo e dos consumidores em massa AFP

O Tribunal de Justiça da União Europeia entende que, quando os trabalhadores não têm local fixo ou habitual, as deslocações entre a sua casa e o primeiro cliente e entre o último cliente e a sua residência devem ser considerados tempo de trabalho. A decisão diz respeito a um caso que envolve a empresa de sistemas de segurança Tyco e um sindicato espanhol, mas terá influência na forma como os tribunais interpretam a directiva sobre o tempo de trabalho num sentido mais favorável aos trabalhadores.

Advogados questionados pelo PÚBLICO afastam a necessidade de alterar a legislação nacional, que praticamente transcreve a noção de tempo de trabalho prevista na directiva europeia. Mas reconhecem que a decisão poderá ajudar os tribunais portugueses a interpretar o Código do Trabalho, sobretudo quando estão em causa trabalhadores que não têm um local de trabalho fixo, como é o caso de vendedores e delegados de propaganda médica, entre outros, ou que não estão abrangidos por contratos colectivos.

O caso analisado tem contornos particulares que são detalhados no comunicado divulgado no final da semana passada pelo Tribunal com sede no Luxemburgo. Os técnicos da Tyco instalam aparelhos de segurança numa área que pode abranger várias províncias, usam carro e telemóvel da empresa e a distância entre a sua residência e os clientes pode ser superior a 100 quilómetros. A empresa considera essas deslocações no início e final do dia como tempo de descanso. Mas antes de ter encerrado os seus escritórios regionais tinha um entendimento diferente e calculava o tempo de trabalho diário a partir da hora de chegada ao escritório, onde os trabalhadores recolhiam o carro e a lista de clientes, até à hora de regresso, à noite, ao escritório.

Questionado pela Audiência Nacional, o Tribunal de Justiça concluiu que “quando os trabalhadores, como os da situação em causa, não têm local de trabalho fixo ou habitual, constitui tempo de trabalho, na acepção da directiva, o tempo de deslocação que esses trabalhadores despendem diariamente entre a sua residência e os domicílios do primeiro e do último clientes designados pela entidade patronal”. E vai mais longe ao entender que esses trabalhadores “estão no exercício da sua actividade ou das suas funções durante o tempo dessas deslocações”.

Fausto Leite, advogado especialista em direito laboral, não tem dúvidas de que a decisão “irá contribuir para clarificar situações semelhantes num sentido mais favorável aos trabalhadores”, quando os tribunais portugueses forem chamados a decidir sobre casos semelhantes. “A principal preocupação do Tribunal europeu é a saúde e a segurança no trabalho. No caso da Tyco, o regime obrigaria a um excesso de horas e de tempo de trabalho que punha em causa a saúde e a segurança do próprio trabalhador”, justifica.

Também Paula Caldeira Dutschmann, do escritório de advogados Miranda, considera que o acórdão “vem reforçar uma interpretação que já era possível extrair do actual Código do Trabalho”. “Esta decisão poderá ajudar os tribunais portugueses a interpretar o código, sobretudo em relação aos trabalhadores que não têm um registo de entrada e de saída”, adianta.

Já do ponto de vista do empregador, acrescenta, vem alertar para a necessidade de se criarem “mecanismos de controlo dos tempos de saída e dos percursos escolhidos para as deslocações, porque pode dar origem a pagamento de trabalho suplementar”.

Pedro Furtado Martins, advogado da CS Associados, lembra que o caso tem contornos particulares aos quais a decisão do Tribunal “não é indiferente”. Ainda assim, “é natural que a decisão tenha alguma influência na forma como os tribunais encarariam um caso semelhante”, antecipa.

Embora em Portugal muitas destas questões estejam previstas nos contratos colectivos, quando se aplica apenas a lei e não há um local de trabalho fixo ou habitual “a questão do tempo de trabalho complica-se e não há regras claras”.

Num comunicado divulgado nesta terça-feira, a UGT destacou a importância da decisão do Tribunal de Justiça, considerando que "contribuirá decisivamente para pôr termo à interpretação abusiva do normativo comunitário e à situação de exploração de muitos trabalhadores".

"A UGT saúda esta importante decisão, relembrando porém que existem ainda muitas outras questões por resolver sobre o que deve ser considerado como tempo de trabalho no quadro da directiva e que fazem com que muitos trabalhadores estejam ainda sujeitos a condições de trabalho que fazem perigar a sua segurança e a sua saúde", refere a central sindical liderada por Carlos Silva.

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