Da reestruturação silenciosa da dívida ao debate sobre prioridades e direitos

Especialistas foram à AR debater a renegociação. Entre quem considera a dívida sustentável e quem pede um processo unilateral, surge uma terceira via a defender uma posição comum entre alguns parceiros europeus.

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“A política de austeridade não foi parte da solução, mas foi claramente parte do problema”, diz o embaixador da Argentina em Portugal Enric Vives-Rubio

Os direitos de cidadania têm prioridade sobre o serviço da dívida pública, forçando uma renegociação com os credores, ou é o pagamento da dívida, sem alterações, que melhor protege esses direitos? A questão central que separa as águas entre quem defende e quem rejeita uma reestruturação da dívida portuguesa foi convocada várias vezes ao longo da conferência que, nesta terça-feira, juntou no Parlamento investigadores, economistas, advogados e políticos a discutir as implicações de um processo de renegociação.

Desta vez, não se colocaram dúvidas de semântica sobre o que distingue, afasta ou aproxima a “renegociação” de uma “reestruturação”. Em cima da mesa havia um tema quente para abordar: a sustentabilidade da dívida. E, neste ponto, os oradores João Duque, João Cravinho, José Castro Caldas e Paulo Trigo Pereira concordam que alguma coisa é preciso fazer para baixar o nível da dívida, actualmente nos 131,6% do PIB. Não coincidem é na forma (e no tempo) de o concretizar.

De manhã – período em que a conferência se centrou noutras experiências de reestruturação, Grécia, Argentina e Equador –, o fiscalista Eduardo Paz Ferreira, autor de A Austeridade Cura... A Austeridade Mata?, deu o tiro de partida. Para desdramatizar a discussão, lembrou que o próprio IGCP, a agência responsável pela tesouraria e a gestão da dívida do Estado, tem feito com as suas operações de mercado uma “certa reestruturação silenciosa da dívida”. Que Paz Ferreira diz não dispensar uma renegociação com os credores.

Para José Castro Caldas, Portugal vai continuar confrontado com baixos níveis de crescimento e, para evitar uma reestruturação, precisaria de “saldos orçamentais exorbitantes”. E isso, diz, implicaria “cortes violentos” na despesa ou “violentos aumentos dos impostos”, o que considera insustentável.

A solução, entende o investigador do Observatório Sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, obriga Portugal a preparar-se para uma reestruturação da dívida, mesmo que ela tenha de ser desencadeada de forma unilateral.

O socialista João Cravinho, um dos promotores do Manifesto dos 74, acredita que mais cedo ou mais tarde “alguma coisa vai suceder”, dadas as fragilidades da economia portuguesa, no que toca ao crescimento, ao nível das suas exportações e à dificuldade em conseguir excedentes orçamentais primários suficientes para baixar a dívida para níveis sustentáveis.

Dialogar na Europa
Em vez de Portugal desencadear pelo seu próprio pé, unilateralmente, um processo de reestruturação, Paulo Trigo Pereira defende que Portugal deve antes envolver-se numa “solução europeia para a dívida”, com “os parceiros que quiserem dialogar”. Um meio-termo entre os que defendem que seja desencadeado um processo unilateral e os que dizem que nada se deve fazer.

Para o presidente do Instituto de Políticas Públicas Thomas Jefferson-Correia da Serra, o Governo deve tomar a iniciativa de lançar o “diálogo com os parceiros e definir uma estratégia multilateral”, sem esperar que a solução surja do lado da Comissão Europeia ou do Conselho Europeu. Ora, para o economista, dizer que a solução deve ser europeia “não significa que não se faça nada”.

A questão, diria o economista João Duque, passa por “[saber qual é] o tempo de o fazer e a forma de o fazer”. Isto para transformar “uma situação de risco numa oportunidade”.

Trigo Pereira considerou ainda que “os direitos devem ter prioridade sobre a dívida”. “Eu protejo melhor os direitos sociais renegociando multilateralmente a dívida”. João Cravinho concorda: “Há direitos fundamentais de cidadania que têm precedência [sobre outros direitos do espaço público, como o pagamento da dívida aos credores]”.

Pela voz de Duarte Pacheco, a bancada social-democrata lançou alguns alertas sobre os impactos negativos de um processo de reestruturação. “Os perigos existem”, dramatizou o deputado do PSD, temendo um “agravamento concreto da vida dos cidadãos”. Defendeu que “todas as soluções devem ser desenvolvidas no campo europeu”, mas não explicou como as concretizar.

Já Paulo Sá, deputado do PCP, diz que manter o actual nível da dívida é que representa hipotecar o futuro do povo português. Dizer que a dívida é sustentável caso se concretizem determinados excedentes orçamentais difíceis de atingir “significa projectar uma política de empobrecimento” durante décadas, contrapôs. Posição semelhante assumiu o líder do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, que se insurgiu contra a ideia de que a dívida deve ser sobreposta a “tudo o que são direitos”.

João Duque, professor no ISEG, foi mais cauteloso, mostrando-se preocupado com o afastamento de compradores de dívida e com a possibilidade de o país seguir o mesmo caminho que a Argentina.

De manhã, Jorge Argüello, embaixador argentino em Portugal, defendeu a reestruturação da dívida como a única via que permitiu ao país lutar “contra os [fundos] abutres”. “A política de austeridade não foi parte da solução, mas foi claramente parte do problema”, vincou.

A discussão acabou também por revelar-se um debate sobre a liberdade. Castro Caldas sublinhou mesmo que foi “da maior importância” o Parlamento poder discutir a questão da dívida sem atender à pressão dos mercados.

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