Velhinho, de bengala, mas firme

Um pedaço de papel – Testamento de D. Afonso II, de 1214 -, sobrevivente audaz da acção de gerações de carcomas, veio mudar tudo. Tudo é uma maneira de dizer, na verdade, mas alguma coisa apenas. Trouxe mais uma data para comemorar, num mundo que passa bem com os seus crescentes marcos para lembrar imensas coisas, como se a Humanidade receasse os seus próprios apagões de memória.

Para se poder dizer que vem de longe a língua em que se escreveu os Lusíadas, a régia relíquia faz um jeito tremendo e aqui estamos, em diferentes pontos do planeta, a glorificar os oito séculos de um património que a expansão dos mares tornou vastamente comum.

Certeiros os que repescaram o pretexto para se exprimir ideias em torno da língua levada a bordo pelos marujos que circundaram o mundo, momento bom para, entre velas acesas e foguetes a ribombarem, gabar a solidez do português como riqueza dos homens. Nas cinco partidas – Europa, América, África, Ásia e mais além, na Oceânia – ouve-se a língua, tem-se comunicação, volta-se ao tal pedaço de papel com 800 longos anos. Brinda-se, numa celebração de rugas triunfantes, à incrível capacidade de desbravar caminhos e seguir em frente.

O que dizer num dia assim, de caminhos festivos? Quiçá fugir-lhe precisamente dessa obviedade, a fanfarra, o rufar dos tambores, a algazarra, para ficarmos com o lado mais rigoroso e contido da celebração. Sim, porque vale a pena meditar sobre o presente e o amanhã da língua que nos serve a comunicação, num tempo de desassossegos invulgares.

Caberá a cada qual exprimir-se com as dores que o atormentam, sempre de níveis variados por todas as razões, mas como angolano que se deita e se levanta com a ferramenta língua à ilharga, as preocupações e angústias são para dizer na curva pesada dos 800 anos.

Estareis felizes com os rumos da língua?, perguntariam, se possível, D. Afonso II, Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz ou Jorge Amado.

Dir-lhes-ei, como utilizador privilegiado da língua (privilegiado no sentido do uso frequente, nunca sob qualquer outro olhar), que adoraria estar por cá na curva dos próximos oito séculos para saber, até lá, o que terá sucedido à resistente língua.

Afligem-me o descuido e o descaso, a incompetência e a rigidez, embrutecidos todos estes males por um Acordo Ortográfico que descobriu o caminho mais rápido para o suicídio colectivo. Como se, de repente, milhões de falantes nos esquecêssemos de que as línguas são vivas e fá-las o povo que se comunica e jamais o decreto estéril do burocrata rodeado de poder.

O português, como toda e qualquer língua mergulhada no empenho da perpetuidade, tem de ser deixado aos seus forjadores (in)conscientes, às comunidades, cabendo aos cérebros da academia a vigilância que protege as reservas sem mutilar essências nem, muito menos, trucidar cada novo espigão. Estará moribunda a língua dos oito séculos no dia em que, de Dili a Maputo, Salvador a Luanda, Bissau a Lisboa, o ritmo, o sotaque, o vocabulário e a cadência procurarem o mesmo trilho!

Jornalista e escritor. Texto originalmente publicado no jornal Semanário Angolense (Angola) a 28 de Junho de 2014

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