Uma tragédia que é uma farsa, como a vida

João Mota regressa ao Porto para fazer a sua primeira encenação de Espectros, de Ibsen, numa co-produção da Seiva Trupe com o Teatro Nacional São João. Uma sucessão de estreias, numa tragédia que o encenador diz manter toda a actualidade.

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Custódia Gallego é a protagonista de Espectros Fernando Veludo/NFactos
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Custódia Gallego (Helene Alving) com o filho Osvald (Ricardo Ribeiro) Fernando Veludo/NFactos
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Custódia Gallego (Helene Alving) com o filho Osvald (Ricardo Ribeiro) Fernando Veludo/NFactos
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Catarina Campos Costa é Regine, a filha da criada Fernando Veludo/NFactos
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Regine com o suposto pai, Engstrand (António Reis) Fernando Veludo/NFactos
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António Reis é o carpinteiro Engstrand Fernando Veludo/NFactos
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Júlio Cardoso é o pastor Manders Fernando Veludo/NFactos
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Regine com o pastor Manders Fernando Veludo/NFactos
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Custódia Gallego é Helene Alving Fernando Veludo/NFactos
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Helene Alving e o pastor Manders Fernando Veludo/NFactos
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Regine e o carpinteiro Engstrand Fernando Veludo/NFactos
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Regine com o pastor Manders Fernando Veludo/NFactos

Uma dupla estreia em volta de Henrik Ibsen marca a produção que esta quinta-feira sobe à cena no Teatro Nacional São João (TNSJ): Espectros, peça que o dramaturgo norueguês publicou em 1881, que provocou escândalo, e chega agora ao palco numa co-produção com a Seiva Trupe e encenação de João Mota.

É a primeira vez de ambos, este encontro com um autor comummente visto como o fundador do teatro moderno, e que George Steiner considerou mesmo, no seu tempo, “o mais importante dramaturgo desde Shakespeare e Racine”.

Espectros é uma das melhores peças de Ibsen, que eu acho que é ainda melhor do que o Racine – e depois vêm o Strindberg, o Brecht e outros”, disse o encenador ao PÚBLICO, momentos antes de iniciar o último ensaio no palco do TNSJ, já com algum público convidado na plateia.

Espectros é também, tanto quanto a memória de Júlio Cardoso permite dizer, a primeira abordagem da Seiva Trupe ao universo de Ibsen. E significa o regresso da histórica companhia portuense à parceria com o TNSJ, 16 anos depois da co-produção Péricles – Príncipe de Tiro, de Shakespeare.

“Está a correr maravilhosamente bem de parte a parte. Fomos recebidos com muita simpatia, muita fraternidade e, especialmente, muito rigor artístico-cultural, que é o mais importante”, diz o director artístico da Seiva Trupe sobre este regresso ao TNSJ, numa peça onde também integra o elenco, ao lado de outro nome histórico da Seiva, António Reis, e de Ricardo Ribeiro, Catarina Campos Costa e Custódia Gallego, que desempenha o papel principal de Espectros.

O encontro da “actriz certa” para a personagem foi, de resto, uma das razões para que a Seiva Trupe só agora concretizasse um projecto que tinha nas suas “prateleiras” há já mais de década e meia. “O papel exige esse cuidado, e estivemos sempre à espera de ter essa actriz”, diz Júlio Cardoso, lembrando a responsabilidade que a sua companhia tem “perante a cidade”. “É que, a nós, não nos admitem fazer teatro potencial, que é aquilo que se está a ver muito agora”, justifica o actor.

Teatro é teatro

No palco de Espectros, sem qualquer resguardo relativamente ao espaço de bastidores, há uma carpete vermelha sangue, uma mesa com duas cadeiras, um sofá, um canapé e um piano, tudo sob um lustre e um ecrã ao fundo. Do lado de fora do espaço da acção, duas filas de cadeiras, também vermelhas, acolhem os actores quando não estão em cena.

“Quando eu escolho vir ao teatro, não escolho vir ao cinema, e o pior que me podem fazer é querer enganar-me e dizer-me que não estou no teatro. Metem muita coisa no palco, e os actores são muitas vezes mais um objecto que lá está”, diz João Mota, que é também o responsável pela cenografia do espectáculo.

A sua aposta é nos actores e no texto. “Um palco é um espaço vazio, despojado – como defendia o Peter Brook, com quem trabalhei ano e meio –, e o actor tem de ter esse vazio para poder criar; e é quando pisa o tapete que se transforma no personagem”, diz o encenador e director artístico da Comuna – ondem mantém em cena a peça de Neil Simon, O Último dos Românticos.

Sobre Espectros – uma peça que só viu uma vez numa encenação em Portugal, no Teatro Experimental de Cascais, dirigida por Carlos Avillez e com Carmen Dolores no papel principal –, João Mota diz tratar-se de um texto de que gosta especialmente. “E há uma coisa de que sempre gostei muito no Ibsen – como no Strindberg –, que é ele falar da liberdade e da mulher”, acrescenta o encenador, dizendo que Espectros é um texto “sobre o desmembrar de uma sociedade em que se anuncia o novo, e a luta entre o novo e o velho é tremenda: as leis, as ordens, os deveres, essas obrigações todas determinadas pela própria Igreja – felizmente, agora, com o Papa Francisco, está a aligeirar um pouco…”

Outra razão que levou João Mota a não resistir ao convite da Seiva Trupe – para quem, em 2010, tinha encenado a peça de Doug Wright, Eu sou a minha própria mulher – foi “a grande actualidade” do texto de Ibsen. Trata-se de uma história que retrata “uma sociedade que, como a de hoje, vive debaixo de uma grande mentira”, e que está marcada “pela corrupção, que começa também na família, com o faz de conta – faz de conta que eu não vi, que eu não sei... –, é assim que nos vamos matando".

O encenador vê em Espectros uma peça “sobre a morte”, que resume assim: “É uma tragédia que é uma farsa, porque a vida é uma farsa; e a farsa trágica é a pior coisa que há”.

Uma mãe à espera

À espera, no seu caso, de se estrear no palco do Teatro São João, Custódia Gallego disse ao PÚBLICO ter aceitado o desafio de Espectros, “primeiro, pelo texto de Ibsen”, que tinha lido no seu tempo de estudante de teatro, e que agora foi reler. “Não se tem duas oportunidades destas”, notava a actriz, recém-chegada de Lisboa de mais uma jornada para as últimas gravações da telenovela Coração d’Ouro (SIC).

E também por poder finalmente trabalhar com João Mota, “um mestre”, de quem fora aluna nos cursos da Comuna, mas com quem nunca se tinha encontrado num palco profissional.

Em Espectros, Custódia Gallego é Helene Alving, “uma mulher, como muitas, que não pôde assumir o seu amor do coração e acabou por iniciar uma vida em tudo obrigada pela sociedade do seu tempo”. Helene acabou por casar com um homem devasso, que ficou com uma doença sexualmente transmissível – a sífilis, que, na altura, estamos na segunda metade do século XIX, era vista como o resultado do pecado original –, e que acabaria por transmitir também ao filho.

Neste quadro familiar – continua a actriz – “a mãe quis separar o filho, aos sete anos, desta podridão que ela tinha em casa, até o marido morrer”. E a acção de Espectros começa no momento em que o marido já esta morto. “Ela já se livrou daquele peso, e vai receber filho em casa, já adulto, agora com a expectativa de finalmente poder ser mãe, algo que até aí não tinha conseguido”.

Mas as coisas correm de forma diferente, e os “espectros” da herança do pai reaparecem.

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