Uma tragédia anunciada

Imergindo no primeiro livro de W. G. Sebald, Do Natural, Miguel Loureiro encena no Teatro São Luiz, em Lisboa, a leitura de um texto atravessado pela busca do autor alemão atrás de sinais de uma catástrofe em marcha.

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Não são apenas os belos Alpes pintados de branco. Não é apenas uma paisagem imaculada, de uma Natureza inviolada. É também um rumor persistente, subterrâneo, inominável, na escrita de W. G. Sebald impressa nos três poemas em prosa que compõem Do Natural. Para Miguel Loureiro, actor e encenador de uma leitura encenada da obra, o texto reverbera “um prenúncio e um aviso de uma grande catástrofe invisível que vem aí, aflorada por pequenos sinais”, que lhe traz à memória O Laço Branco, filme do austríaco Michael Haneke saturado de uma tensão larvar sobre a origem do mal, da perversidade e do radicalismo em vésperas da Primeira Guerra Mundial. Esses pequenos sinais, exemplifica Loureiro, podem estar num mensageiro coxo chegado numa manhã de Ano Novo, de sobretudo negro, sozinho, num vasto campo nevado. E que coxeia apenas para introduzir um pequeno mas visível golpe de corrosão numa imagem de normalidade.

Estão três actores sentados a uma mesa, decorada com uma memorabilia dispersa, encarnando os três homens alemães que habitam o livro de Sebald: o pintor de retábulos do século XVI Matthaeus Grünewald, o naturalista do século XVIII Georg Steller e o próprio escritor. Sem complicar o jogo de cena e antes ajudados pela projecção de imagens “que vão abrindo do preto e branco para a cor” e por uma sonoplastia tratada como “memória sonora”, deixam que a atenção pouse sobre o texto, em si mesmo um exercício memorialista. E é a grandeza do texto, pontuado por passagens biográficas de temática por vezes mais corriqueira (usadas como ganchos para prender a concentração exigida ao espectador), que Miguel Loureiro quer fazer ressoar junto do público do Teatro São Luiz, em Lisboa, num “confronto com o grande desconhecido da Natureza – que para alguns envolve contornos místicos, para outros está apenas ligado ao acaso ou até à obra maravilhosa criada por Deus”.

Só que as paisagens na escrita depurada de Sebald não são apenas os belos Alpes. Surgem-nos também como uma assimilação da acção humana enquanto parte da paisagem. “As paisagens de destruição passam a ser paisagens naturais e a partir daí o natural não tem imediatamente a conotação de que é sempre bom e poluído pelo gesto humano”, defende o encenador. “Esse gesto humano é readquirido pelo natural.” É o que acontece na descrição dos vestígios e das ruínas de Manchester, ou na passagem em que Sebald fala de uma crisálida que cresce ao lado de um tanque do Blitzkrieg. É uma imagem não somente da integração do horror na Natureza, mas também da História tragando esse momento e avançando sobre ele, cobrindo-o aos poucos. Em parte, na escrita de Sebald, como mecanismo de uma culpa comum a muita da produção literária germânica do século XX. A própria imagem dos Alpes, lembra Miguel Loureiro, é a imagem de alguém que cresceu a olhar noutra direcção, quase sem se dar conta da monstruosidade que avançava nas suas costas. “Apesar da impressão devastadora que tal acontecimento possa ter deixado no meu início de vida, apesar dos tempos medonhos noutros sítios, cresci junto à face norte dos Alpes sem ter uma clara noção da destruição”, cita o encenador de memória.

Citar de memória não é um problema caso revele alguma inexactidão. Todo o trabalho desenvolvido em Do Natural assenta precisamente na relação com a memória, num sentido mais amplo mas também neste mais estrito. A própria entrega do texto ao público pelos três actores em cena reside na tentativa de lhe permanecer fiel, desvendando uma outra dimensão do natural: a erosão, a transformação e a integração num novo contexto.

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O lugar do consolo
Os ecos do cinema de Michael Haneke prendem-se precisamente com uma ideia de busca incessante (que informa este Do Natural nos fins de tarde do São Luiz, entre 5 e 14 de Março) por avisos, sinais, prenúncios da tragédia do cataclismo nazi. Funciona como um remexer nas próprias memórias tentando identificar e expor esses avisos mais ou menos óbvios de um horror iminente. “Ao fazer estes livros memorialistas”, vinca Miguel Loureiro, “que são uma espécie de documentos sobre a memória, sobre o fim das coisas, Sebald vai também à procura desse aviso que não viu na altura in loco e in tempore. E tal como no filme do Haneke se pressentia que na continuação iríamos ver os campos de concentração e a ascensão e a queda da Alemanha, na escrita do Sebald vejo que se fôssemos mais adiante veríamos todo o negativismo na tradição da filosofia alemã, mas oferecida de uma forma elegante e poetizada”.

A Natureza pode funcionar aqui como lugar de consolo e de fuga em relação à destruição e à acção humana. “Às vezes é até reflexo e cúmplice dessa destruição”, acrescenta Miguel Loureiro. Mas reserva sempre um poder de remissão e de refúgio do grotesco. Algo que não é novo no percurso que o colectivo 3/quartos vem construindo desde a sua estreia, em 2011, com Pastoral, a partir de Crisfal, de Cristóvão Falcão, prosseguido em Nos Bosques Profundamente Silenciosos das Montanhas Trácias, assente no mito de Orfeu, ou mesmo na colaboração de Miguel Loureiro com André Guedes Nova, Caledónia, peça baseada na experiência da Comuna de Paris de 1871. Essa recorrência da Natureza nos espectáculos do actor e encenador tem origem num interesse muito particular justificado por haver “qualquer coisa que está a falir na nossa convivência pessoal e na organização do sítio que nos é mais natural – as cidades e as comunidades”.

Admitindo que este movimento possa ser entendido como escapatória, ponto de fuga, alienação ou mesmo reflexo romântico, certo é que se trata de uma tentativa consciente de imergir em textos que transmitam o “pulsar de um tempo em que os prados eram mais verdes e em que existia uma certa inocência”. “Não encontro tanto a inocência no amor entre duas pessoas. Encontro um mistério e uma perversão maiores na Natureza. Encontro as narrativas todas que encontro nos plots humanos, mas com mais cor e mais terreno para explorar.” E tal como Sebald se diz um ornitólogo camuflado, também Do Natural se apresenta como um espectáculo camuflado. Com recursos mínimos, para que seja o texto a cercar-nos e a dominar-nos, sem aceitar outras distracções.

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