Uma boa sebenta

Mais um estudo encomendado pelo Governo que desperdiça uma oportunidade para definir políticas culturais claras e clarividentes

Cultura e Desenvolvimento: Um Guia Para os Decisores, que o Gabinete de Análise Económica produziu sob a direcção de José Tavares, é outro dos dez estudos encomendados pelo Governo sobre a relação entre a economia e a cultura, explorando uma linha de financiamento da União Europeia tendo em vista o programa Europa 2020. 

De há uns tempos a esta parte, e na proporção inversa do investimento do Governo na cultura, evidencia-se uma estratégia que pretende provar que a relação entre economia e cultura é positiva, que afinal a cultura é boa para a economia, podendo até ser financeiramente rentável ou, mais ainda, necessária ao país! Esta obsessão é recente, ter-se-á iniciado há mais de uma década com o surgimento das famosas indústrias criativas da terceira vaga e continua hoje, não por acaso, a par do pressuposto neoliberal da autorregulamentação do mercado (que já teria integrado a cultura). 

Que existe uma relação directa entre a cultura material e artística e o dinheiro é uma verdade tão ancestral quanto a criação do objecto moeda, combinação magistral dessa ligação. Que existe uma economia da cultura dos bens materiais e imateriais é também verdade. Acrescente-se a existência de economias de vários tipos, desde a simbólica à do potlach (acumulação desinteressada dos bens para a comunidade) — mesmo que neste tipo de discurso continue a não ser claramente definido o que se entende por cultura, questão que deveria ser central.

Abre este estudo uma citação de Gilles Lipovetsky, sociólogo que se tem dedicado ao estudo do luxo, do fascínio pelo dinheiro, da sedução, da hipermodernidade, da cultura de massas. Curiosamente, onde Lipovetsky faz um exercício de desconstrução da relação entre o consumo e a cultura afirmando que “já não estamos na ordem nobre da cultura definida como o caminho do espírito; mudámos para um ‘capitalismo cultural’ em que as indústrias da cultura e da comunicação se impõem como ferramentas e motores de crescimento da economia”, os autores que o citam parecem ver uma coisa totalmente diferente, que interpretam como uma lei da cultura nos “tempos de hoje”. Depois, partindo daí, o estudo envereda pela utilização da cultura como entidade homogénea, sem fissuras ou descontinuidades, sem qualquer negatividade. 

Esta é uma opção não apenas académica, mas de afirmação do lugar de proveniência do estudo: a economia. Ou de uma certa economia que se interessa pela cultura como objecto de estudo distanciado, exterior, mesmo se os autores convocam alguns profissionais do sector por algumas horas. Nenhuma narrativa, nenhum estudo realizado do “outro lado” — do lado das práticas culturais — são para aqui chamados. A abordagem faz-se do lugar da perspectiva da economia, pelo que esta é apenas olhada de fora — e todo o léxico confirma esse lugar de onde não emana qualquer vestígio do universo das práticas artísticas, da história, da memória, da arqueologia. Exemplo disso é o conjunto de mapas, esquemas, estruturas que, desvalorizando o singular e o específico, acabam sempre por desfigurar a diversidade das práticas culturais nas comunidades concretas; ou o tipo de linguagem do seguinte parágrafo: “Note-se que as actividades culturais envolvem valores e crenças, atitudes e comportamentos, e uma combinação de cultura erudita e cultura popular, bem como elementos fora do âmbito da cultura. A parte das actividades culturais que se encontra dentro da economia pode ser apelidada de sector cultural” (p. 7). Suficientemente generalista e de significação tão flutuante que não produz nenhum sentido válido.

O estudo apresenta uma vasta lista de citações e de autores, como se tratasse de um compêndio de resumos de muitas teorias sobre cultura; chega mesmo a apresentar alguma problematização do que se entende por cultura, embora pouco elaborada. Esta parte prova sobretudo o interesse actual que a relação entre modos de cultura e modos de economia suscita no âmbito de uma Economia que se reclame como de ciência do comportamento humano e como ciência social, com as suas forças e fragilidades. É um aspecto positivo do estudo, mas que tem a grande limitação de sobrevoar a cultura genericamente tida como tal. Há ainda alguma da reflexão que tem vindo a ser feita pela Sociologia da Arte, nomeadamente em relação aos possíveis graus de satisfação que a cultura permitirá: ao conhecimento para usufruto do futuro, à diferença e à novidade que os artistas introduzem (a integração dos artistas na cultura aparece como evidente quando de facto não o é), às externalidades importantes na produção e no consumo de bens culturais, acabando por tornar evidente e central que uma avaliação económica da cultura não pode ser maioritariamente quantitativa.

O conceito de utilidade — e talvez o estudo devesse começar por aqui —, esse sim, deveria ser desenvolvido e problematizado porque tal raciocínio permitiria criar paralelismos com as políticas de investimento e as economias de sustentabilidade conformes à educação, à saúde, ao ambiente. Serviria também para nomear e classificar a diversidade de entendimentos, géneros e práticas que incorrectamente se incluem sob o termo cultura. E para demonstrar que existe uma dimensão de utilidade oportuna quando “as infraestruturas culturais afectam a aglomeração local de talento, bem como o crescimento económico a longo prazo”, caso essas infraestruturas sejam providas de políticas culturais e de programas.

Chegados ao capítulo das conclusões, surgem tantas e tão genéricas que se excedem em sentidos, embora sempre apelando bom-senso. A bondade intrínseca do termo cultura nunca é, aliás, questionada pelos autores: é sempre um bem, um conforto, e, se for criativa em conformidade com as regras definidas pelos técnicos de Bruxelas, é rentável, podendo até beneficiar o comércio bilateral. 

O estudo seria uma boa sebenta de introdução a uma possível economia da cultura, não fosse a cultura aparecer como coisa neutra naquilo que é já e explicitamente uma afirmação ideológica, pois nunca se admite que pode ser um fenómeno gerador de conflitos e de campos de batalha. O que deveria ser estudado e questionado é a relação que se estabelece entre as pessoas — relação simbólica, material, discursiva, visual, emotiva e interactiva — por meio dos bens materiais e imateriais a que chamamos livros, filmes, ruínas, imagens, etc... Esta é a grande decepção do estudo que se anuncia como “guia para os decisores”. Ainda que se mantivesse a ideia de haver destinatários para o estudo — os decisores (mais uma generalização, pois não se define quem são: serão os políticos, os empresários, os técnicos bancários de capital de risco?) —, o “guia” deveria ter sido concebido como uma proposta de política cultural com opções e prioridades claras e clarividentes, acompanhadas dos modos económicos possíveis de a sustentarem. Não o sendo, é apenas uma sebenta que será aproveitada como instrumento de propaganda do Governo.

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