Um palco para a desobediência

Propondo-se recriar uma misteriosa e suspeita experiência levada a cabo em 1974, Ana Borralho e João Galante convocam o público para um teste de variadas leituras. Por exemplo: o que significa a liberdade e até onde a voz de comando obriga à obediência.

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Aqui Estamos Nós depende da participação dos espectadores como voluntários para a experiência que Ana Borralho e João Galante pretendem recriar ANA BORRALHO/JOÃO GALANTE
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Nada mais violento do que empinar latas de refrigerante na cabeça ou dançar White Stripes deverá passar-se em palco ANA BORRALHO/JOÃO GALANTE
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João Galante e Ana Borralho, a dupla de encenadores e performers por trás de Aqui Estamos Nós BRUNO SIMÕES

Vasculhando impacientemente a Internet, descobrimos Solomon Hoffman como um jovem compositor norte-americano com queda para os musicais, frequentador assíduo do nova-iorquino Café Music at Dolphin. Ter-se-á formado em Psicologia, mas não é psicólogo – e não se sabe se alguma vez visitou Lisboa. Ou Solomon Hoffman como uma combinação dos psicólogos R. L. Solomon e Howard S. Hoffman, autores, em 1974, de Learning and Motivation, estudo sobre processos opostos testados num contexto de uso de ópio, amor romântico e choques eléctricos. Em nenhum resultado, porém, se vislumbra a ponta do novelo de um tal Solomon Hoffman, psicólogo influente, controverso e avesso a aparições públicas, que terá, segundo Ana Borralho e João Galante, visitado Lisboa em Novembro de 1974 e levado a cabo – juntamente com outras dezenas de cientistas – uma bizarra e turva experiência num teatro da cidade.

Na paragem em Basileia da anterior criação de Borralho e Galante, Atlas, que exige uma centena de voluntários locais para ganhar vida em cena, os autores contam que deram de caras com Charlotte Hoffman. A neta de Solomon ter-lhe-á passado os manuscritos em português das ordens que teriam ter sido gravadas em cassete e escutadas pelos participantes/cobaias de 74. Intimados a responderem a um batalhão de perguntas pelo velho método de braço no ar, tão depressa inquirindo sobre a reencarnação e o cadastro criminal quanto sobre posições sobre a igualdade e a liberdade, aos participantes era sobretudo exigido que obedecessem às instruções registadas nas gravações. Como, garantem Ana e João, os únicos registos da experiência dizem respeito às perguntas e sobre o acontecimento original haverá difusos e remotos relatos de que tudo terá resultado num desfecho violento ou num simples fracasso, a dupla portuguesa propõe-se agora recriar essa ida noite de há 40 anos no palco do Teatro Maria Matos, entre hoje e domingo.

Aqui Estamos Nós (tradução directa do Hier Wind Sir de Hoffman) depende, por isso, da participação dos espectadores como voluntários para a reconstituição da experiência, na linha daquilo que Borralho e Galante costumam fazer, implicando o público nas suas propostas. Claro que nada de mais violento do que empinar latas de refrigerante na cabeça ou dançar White Stripes deverá passar-se em palco – os ensaios serviram para afastar outras possibilidades. Mas logo desde o início, avisados de que as leis da física e do senso comum não se aplicam na sala de teatro, os participantes são informados de que poderá ser-lhes ordenado que sintam dor, se apaixonem – ou que morram.

Na verdade, aquilo que parece estar verdadeiramente a ser testado na peça de Ana Borralho e João Galante, com texto de Tiago Rodrigues, é algo que reforça o simbolismo do ano de 1974. Em cada lote de ordens e perguntas, aquilo que sobressai meses depois da Revolução de Abril ou no presente é a mesma capacidade de colectiva ou individualmente as pessoas assumirem e reclamarem a sua liberdade. Em especial no que respeita à recusa ou à aceitação de uma obediência cega. E de exercerem essa liberdade para lá da mera constatação de que não são ostensivamente perseguidas e censuradas – mesmo que a tal se sujeitem depois “livremente”. “Transpondo para os dias de hoje”, defende Ana Borralho, “estamos a viver numa democracia que não é assim tão democracia. E aquilo que vemos aqui é também a maneira como nos adaptamos a viver nesta sociedade e reagimos ou não a ela.” Daí, igualmente, a chamada à responsabilidade do público. Há uma ausência de controlo absoluto sobre o que se vai passar em palco que concorre para esse reduto de intervenção individual, de cada um – por mais que se encontre numa artificial situação de exposição pública – poder influenciar o rumo tomado pela peça. “É quase uma maneira de tentar pôr as pessoas a pensar que as suas decisões, acções e opções interferem e influenciam o todo de que fazem parte”, acrescenta a encenadora.

 

O limite

O todo, aliás, está permanentemente em delicado equilíbrio. Aqui Estamos Nós é plural no título, sabendo que o facto de em palco se formar um colectivo de desconhecidos não deixará, ainda assim, de fabricar cumplicidades e adulterar aquilo que pode, à primeira vista, assemelhar-se a uma convicta manifestação de opiniões individuais. A mesma pergunta – é legítimo que uma pessoa se sacrifique em nome do bem comum? –, repetida em diferentes pontos do espectáculo, determinará diferentes contagens dos braços no ar, mesmo se dirigida ao mesmo conjunto de pessoas. “Consegue-se perceber aqui como as pessoas mudam de ideias, como nos influenciamos, manipulamos e deixamos manipular uns pelos outros”, acredita Ana Borralho.

O limite para a obediência traça-se, possivelmente, na nudez física. “Continua a ser um tabu”, admite Ana, “por mais que se perceba que nus somos todos iguais. É o grau zero de leitura.” “Sem roupas não há estatuto”, acrescenta João Galante. Mas as roupas não permitem também uma forma de ficção? De início, é dito aos participantes que podem responder pela sua cabeça ou esconder-se por trás de uma qualquer projecção ficcionada. Daí que, sob a capa do artifício, acabem por emergir mais verdades, por mais facilmente cada um despir as emoções quando para isso é chamado. Para Galante, “no dia-a-dia estamos permanentemente a fazer uma ficção de nós próprios, enquanto aqui no palco, num enquadramento de protecção, podemos ir mais longe”. O que acontece, por exemplo, quando a ordem é que os participantes imaginem uma pessoa que gostassem de insultar e não travem a língua.

Ana Borralho e João Galante, também eles, aparecem em palco através de ficções, de actores que os representam escondendo a sua verdadeira identidade. “Achámos piada a tornarmo-nos tão parecidos quanto possível com o senhor Hoffman”, justifica João. “E quisemos jogar também com a questão da mentira e da verdade.” “Tudo pode ser uma grande verdade ou uma grande mentira”, confirma Ana. Assim é. Em Aqui Estamos Nós, do princípio ao fim, a verdade é filha da mentira.

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