Teatro de metralha, som e fúria

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Macbeth segundo Shakespeare
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Cais Oeste

Cais Oeste
Bernard-Marie Koltès
Encenação de Ivica Buljan
TMJB, 6 de Julho, 16h
Casa cheia
2 estrelas
(Volta à cena em Outubro.)

Macbeth segundo Shakespeare
Heiner Müller
Encenação de Ivica Buljan
Incrível Almadense, 10 de Julho, 18h
Casa cheia
2 estrelas

 Este crítico que vos escreve deu tantas estrelas ultimamente que parece ter ficado sem nenhuma para as duas encenações de Ivica Buljan apresentadas no Festival de Almada, uma das quais em estreia mundial, produção da casa, a outra trazendo na mala prémios de Cuba e da Eslovénia. Infelizmente, a razão é outra. Não só a vontade de rever estes espectáculos é pouca, como o desejo de nunca os ter visto subsiste. O mesmo dirão, talvez, as dezenas de espectadores que, em jeito de pateada passiva, abandonaram a sala principal do TMJB sem aplaudir a estreia de Cais Oeste. Macbeth, pelo contrário, foi aplaudido de pé por metade da Incrível Almadense.

Cais Oeste começa por surpreender o espectador com a monumental e detalhada cenografia de Jean-Guy Lecat, um armazém de zinco abandonado, placas e pichagens por todo o lado. A este hangar junto a um cais chega de Jaguar um burguês e a sua secretária (Diogo Dória e Soraia Chaves), ele para se atirar ao rio. O homem é salvo por um dos membros da família (Teresa Gafeira, António Fonseca, Ana Cris, Pedro Walter) que ocupa o lugar, e que vai espoliando o casal dos seus bens – e de si mesmos, últimos objectos de tráfico. De todos estes náufragos, salva-se a filha, capaz da dádiva.

A entrada dos actores no espaço do Cais, como cães rafeiros ou gatos vadios, promete, mas não cumpre. As personagens avançam para a exposição total, perdendo a civilidade a bom ritmo, mas sem que se entenda nem o como nem o porquê. A energia animalesca está desprendida do texto, que é dito como se as palavras não tivessem peso próprio, e as circunstâncias reduzidas a um impulso por personagem, mostrado como se elas não tivessem pensamento, segundas intenções, dúvidas ou hesitações. As frases são cuspidas de maneira automática, como rajadas de metralha, desperdiçando a retórica e a poética das palavras. A ossatura das cenas está lá, mas o músculo e a pele, não. A violência física, os berros e os gestos foram desligados da acção verbal. Se isso era uma táctica para desvincular palavra e corpo e nos levar a pensar o que liga uma coisa à outra, falhou. A metáfora da metralha – que se ouve em off enquanto à boca de cena dois actores simulam uma cópula – ganha corpo, mas não tem voz. O que sobra são efeitos gratuitos, frases ocas e gritos histéricos, e o desperdício de talento de toda a equipa, a precisar de mais tempo para fazer desta de facto antestreia uma experiência de apropriação da peça e da encenação, pelos actores e para o público.


O Macbeth esloveno talvez tenha tido esse tempo, visto que estreou há mais de cinco anos. (A apresentação teve um escolho, a legendagem, tão descompassada que passou Müller pela Moulinex.) A actividade física dos actores está mais bem casada com as circunstâncias das personagens e estas circunstâncias com os versos de Heiner Müller. O espectáculo começa com um dos actores a nomear-se rei, perante o público e um grupo de rapazes de  tronco nu e calças camuflado, como se na caserna decidissem fazer um jogo teatral. As personagens estão sempre em situação limite – rugindo como feras. A ideia é que o Macbeth de Müller, pós-holocausto, pós-nuclear e pós-68, é mais desesperançado que o original humanista de Shakespeare – e que uma boa ilustração dessa desesperança é um bando de militares ex-jugoslavos no pescoço um dos outros. A tragédia de Macbeth – o facto de ser um bom candidato a rei, mas um criminoso, corrompido pela ambição – é ideal para descrever o caminho das repúblicas populares democráticas. Essa contradição é rasurada nesta versão de caserna, onde o movimento é de sentido único. Sobra o som e a fúria da metralha, mimada pelos actores, como padrão de encenação, e pouco mais.

 

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