Quando o cinema português foi matar Hitler

Após uma falha na comunicação com os três pastorinhos, Nossa Senhora aparece agora a quatro personagens-tipo da comédia portuguesa para lhes encomendar um servicinho: o assassínio de Hitler. Entraria Nesta Sala junta Ricardo Neves-Neves e Sandra Faleiro em terras do absurdo.

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Entraria Nesta Sala é um divertimento puro. Por onde vão desfilando figuras reconhecíveis e citações de filmes como Pátio das Cantigas ou O Pai Tirano, mas também homenagens ao teatro radiofónico ou até um voo rasante sobre Sacanas sem Lei de Quentin Tarantino FILIPE FERREIRA

Um homem enche os pulmões, respira fundo, pede ajuda à coragem, reúne apoio popular e, ultrapassado um último obstáculo na forma de sintoma de bronquite, avança com medo de tropeçar nos seus passos pouco seguros ou na sua voz gaguejante. Respira fundo outra vez e dirige-se, finalmente, a um candeeiro. Interpela-o o melhor que sabe. Olha para cima e espera, honestamente, que o candeeiro lhe dê troco. Esse homem, deverá ser evidente por esta altura, chama-se Vasco Santana. Ou, mais exactamente e neste caso em particular, “um género de Vasco Santana”. Quando vemos este género de Vasco Santana roubado a Pátio das Cantigas preparar-se para pedir lume ao candeeiro, vemo-lo não na solidão do filme original, mas rodeado e incentivado por um género de Beatriz Costa, um género de Maria Matos e um género de António Silva.

Entraria Nesta Sala, texto de Ricardo Neves-Neves encenado por Sandra Faleiro em cena no Teatro Nacional D. Maria II até 8 de Novembro, é sempre “um género de”. Não é nada por inteiro, nem pretende sê-lo. É um espectáculo como se fosse uma jarra colada com estilhaços de objectos diferentes, é uma convocação delirante do imaginário e de fragmentos de clássicos do cinema português atirados para um palco onde têm de se haver uns com os outros. E é, em certa medida, um exercício que Neves-Neves faz exactamente no sentido contrário ao que tinha arriscado em Mary Poppins – a Mulher que Salvou o Mundo. Se em Mary Poppins agarrava na figura do filme da Disney e a largava noutro tempo, candidatando-a ao lugar de preceptora numa casa de família dos dias de hoje, uma personagem deslocada da ficção para um espaço real, como a Cecilia de Woody Allen em Rosa Púrpura do Cairo, desta vez quis imaginar como seria se ele próprio, o autor, “estivesse nos anos 40 a escrever para aqueles actores”.

Sandra Faleiro queria um texto de Neves-Neves para encenar e foi por aí, por esse encantamento comum pelo universo da comédia, que começaram. Após o estabelecimento da regra das personagens-tipo, “todo o resto da história foi parvoíce atrás de parvoíce”, diz o autor, também actor na pele de “género de Vasco Santana”. Esta tentação pela “parvoíce” não é um elemento novo no teatro de Neves-Neves. Quando diz que chamarem “estúpido” a um espectáculo seu lhe soa a elogio autêntico, ao crer que “a estupidez é uma coisa muito subestimada”, aquilo que nos está a dizer é que há sempre nos seus textos uma atracção em queda livre pelo absurdo e pelo ridículo, há sempre uma viagem desamparada a um mundo que, na verdade, comporta imediatamente dois planos: o de uma inocência cândida que faz com que tudo seja possível e a imaginação não tenha de viver manietada por uma racionalidade empedernida; e uma disponibilidade para deixar cair essa máscara de gravidade e seriedade a que todos os adultos parecem estar estranhamente obrigados.

Entraria Nesta Sala é, por isso, um divertimento puro. Por onde vão desfilando figuras reconhecíveis e citações de filmes como Pátio das Cantigas ou O Pai Tirano, mas também homenagens ao teatro radiofónico (presentes nas didascálias lidas como se estivéssemos perante uma actuação d’Os Parodiantes de Lisboa) ou até um voo rasante sobre Sacanas sem Lei de Quentin Tarantino.

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Como assim, Tarantino? Pois que assim que o candeeiro, talvez vergado pela ameaça colectiva de que lhe pudessem “humedecer a base”, resolve distribuir lume pelos quatro, logo um inflamado holograma de uma pomba que se transforma em peru que se transforma em ovelhinha que se transforma em Nossa Senhora por ali se alcandora. “A Nossa Senhora na Costa do Castelo!”, exclamam em coro, caídos de joelhos diante da sua presença. Como assim, Sacanas sem Lei? Pois se Tarantino punha em marcha uma vingança da ficção contra a realidade, encenando um atentado contra Hitler e demais figuras de proa do Reich, também aqui esta Nossa Senhora (que apenas fala em castelhano) encomenda a estes quatro, no ano de 1945 – e a após uma alegada falha de comunicação na sua aparição aos três pastorinhos – o assassínio de Hitler. Tal grandioso feito, garante Nossa Senhora, trará extraordinários benefícios a Portugal, sobretudo no início do século XXI.

Para não aparecerem de mãos a abanar, hão-de levar uma colcha para oferecer a Hitler. Na esperança de que, mais tarde, aventa Paizinho, a personagem “género de António Silva”, “um dia em que a gente precise, tanto a Alemanha como os alemães virão em nosso auxílio”.

A chegada da melancolia
O perigo evidente desta alegre promiscuidade de referências é a de que os actores se possam estatelar na imitação ou na paródia, ao levarem para palco piscadelas de olho a obras de fácil datação – quer pelo rasto deixado no imaginário popular, quer pelo decalque da linguagem da época. “No início era uma ‘canastrice’ do pior”, confessa a encenadora. “Depois tivemos de limpar, limpar, limpar e ir doseando. É como estarmos a fazer umas pinceladas de entoações, é música.” Mas é precisamente o tom equilibrado da representação, que para Neves-Neves, “é a ligação mais contínua do espectáculo em relação aos filmes”, que é preciso “policiar imenso”, adverte Sandra Faleiro. “Até ao fim da carreira dos espectáculos vamos ter de manter muita atenção. Muito facilmente se escorrega nesse tom de paródia e de gozo que não nos interessa. Depois, a melancolia vem por acréscimo.”

A melancolia parece estar sempre em estado latente nos textos de Ricardo Neves-Neves, deixando que a comédia ou o absurdo imperem dois terços do tempo, escorregando depois lentamente até tomar conta da cena. Com Entraria Nesta Sala essa inclinação não é diferente. “Acho que todos os meus textos têm esta estrutura”, reconhece o autor. “Tem que ver, talvez, com um género, um tipo, um gosto ou uma defesa minha que é brincar, brincar, brincar e depois guardar os últimos cinco minutos para dizer qualquer coisa.” “Se pensarmos no Charlot, no Buster Keaton ou nos irmãos Marx”, acrescenta Faleiro, “há sempre um lado muito triste, são ao mesmo tempo personagens trágicas. E é isso que torna a coisa tão rica. O Ricardo tem também esta escrita com que fico sempre comovida e isso encanta-me. É a perda da inocência.”

Vem então a melancolia acompanhada de uma citação de O Grande Ditador, de Chaplin, e vem a solidão em modo desabrido. Volta o candeeiro, mas desta vez há apenas um homem sozinho, gasto, vencido, com uma garrafa de vinho na mão. Agora, já nem o candeeiro lhe responde.

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