Provocação

A primeira exposição individual de Katja Novitskova abre um debate que ultrapassa o campo da arte

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Os berços electrónicos de Katja Novitskova querem ser objectos orgânicos, vivos... DR

Várias máquinas abanam-se sobre o chão, sem saírem do lugar. Dir-se-ia que estão nervosas, agitadas, até pelo som que emitem. Em termos figurativos, não são máquinas convencionais. Podiam ser seres mutantes, insectos criados pela biotecnologia, objectos animados por algum tipo de energia. Estão todas ligadas ao mesmo dispositivo eléctrico, uma espécie de órgão central, controlador, e rodeia-as uma curiosa cenografia. De uma parede negra, ressaltam imagens impressas sob alumínio: seres vivos, rochas vulcânicas, gráficos.

Eis uma descrição plausível de Life Update, a estreia individual de Katja Novitskova (Talin, 1994) no circuito expositivo português e, porventura, uma das exposições mais provocadoras de 2015. A provocação não provém, esclareça-se, dos procedimentos ou do processo utilizados, reminiscentes daqueles desenvolvidos ao longo do século XX. O espectador informado não se espantará com a maquinaria “transformada” pela artista. O gesto é familiar, repetido. Está cheio de sombras. O que impressiona e inquieta são as formas das peças e sobretudo o universo ou mundo que a artista “representa” e nos mostra.

As máquinas são berços electrónicos, daqueles que embalam os bebés — ninhos de plástico, insípidos, inventado pelas novas técnicas. Chamemo-los por um nome que se nos vai adequando (não vai?): robôs. Mas não são robôs quaisquer. Sobre o plástico, estão iscos de pesca, extensões de cabelo, lagartixas de borracha. E reproduções de moléculas retiradas da Internet. São, portanto, “instalações” contaminadas pela biologia ou por elementos que o espectador associaria ao mundo dos organismos vivos. Prometem, querem ser objectos orgânicos, movidos por um animismo que só a artista sabe e pode invocar.

A ilusão é momentânea. A dada altura, um dos seres (ou engenhos) imobiliza-se no fundo negro da parede. Fixa-se no espaço do qual se recortam outras imagens. As que Katja Novitskova encontrou e recuperou da Internet e projectou nas superfícies de alumínio: animais (uma raia, um cavalo-marinho, uma planta), matéria inerte (rocha) e gráficos, esquemas. A provocação começa aqui. A artista parece confrontar quem entra na exposição com uma realidade: tudo foi reduzido a informação, a abstracções, ao ponto de já não ser possível distinguir o digital do orgânico, a biologia do comércio, a natureza da tecnologia. Não há como escapar. As imagens são hoje “marcas”, produtos que nos transformam, que nos moldam; a tecnologia confunde-se com o mundo natural e as leis do comércio replicam as leis da natureza.

Feita a provocação, resta a interrogação: subscreverá Katja Novitskova estas ideias? Por ora, tudo leva a crer quer que sim, o que não deixa de ser uma posição honesta. A artista, como muitos dos seus antecessores, é uma entusiasta de “novos mundos” e das maravilhosas rupturas que eles trazem. Caberá então ao espectador pensar para lá das obras, e discutir essa posição, abrindo o debate. Por onde começar? Talvez insistindo que a mercantilização da vida, que o fetiche da mercadoria, que a integridade e a complexidade dos organismo vivos e dos sentimentos e das emoções humanas continuam a ser realidades indeléveis. Que enfim, e agora devolve-se a provocação, existem limites. É uma reserva legítima que não afasta o repto necessário e difícil de Life Update

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