Por trás do muro, a obra da vida de Roger Waters

"The Wall" não é apenas o álbum a que Roger Waters conduziu os Pink Floyd em 1979, é o projecto da sua vida. O seu álbum-manifesto contra o potencial totalitário da política, contra a criminalidade da guerra, contra a opressão que o homem exerce sobre o homem, mal tenha oportunidade, desventura, ou ambas para tal. E por isso Roger Waters, que imaginou o álbum pondo no centro da acção o que melhor conhecia - a sua própria vida e o rock'n'roll -, regressou a ele em 1990 e regressou ao ele em 2010, no início da viagem que passou por Lisboa segunda e terça-feira.

O conceito de ópera-rock é antigo e ultrapassado, mas "The Wall Live" não foi um espectáculo saudosista e anacrónico. Impressionante visualmente, cobriu a totalidade de um disco antigo de 30 anos e, ainda que repleto de pormenores datados, foi uma vitória. Num momento em que as grandes produções de palco, das crucificações de Madonna às libertinagens castiças de Lady Gaga, são fogo-de-artifício pretensamente provocatório, há algo de digno e muito respeitável na ambição de Roger Waters. "The Wall" é uma megalomania, e quanto a isso não tenhamos quaisquer dúvidas - basta atentar no avião que, no final de "In the flesh", logo a início do espectáculo, desce dos céus de madeira do pavilhão para se despenhar contra o muro com estrondo ou, bem mais tarde, no gigantesco porco insuflável que flutuou sobre a plateia durante "The show must go on". Essa escala grandiosa, porém, nunca descambou para fogueira de vaidades de uma estrela rock multimilionária.

Num Pavilhão Atlântico onde a maioria de veteranos esteve longe de ser esmagadora, não houve sombra de memória de que este foi o álbum que levou a geração punk a inscrever um explícito "I hate" sobre t-shirts dos Pink Floyd.

Num Pavilhão Atlântico onde dificilmente teremos ouvido melhor som, apesar da aceleração de Run like hell soar datadíssima como canção dos Foreigner e apesar de ser dispensável, pelo efeito quase cómico que provocou, a aparição de um guitarrista, no topo do muro, para o solo de "Comfortably numb", "The Wall" foi humano e empolgante. Enquanto o muro era construído, viram-se as crianças da Associação Moinho da Juventude da Cova Moura derrotar o gigante professor de "Another brick in the wall" e ouviu-se Roger Waters em dueto consigo enquanto jovem, resgatado a uma filmagem da digressão de 1980, quando era "miserável e nada feliz", como disse o Roger de 67 anos ao apresentar a óptima "Mother" - palco da vaia da noite, disparada ao som do verso "mother should I trust the government?". O muro crescia e as canções sucediam-se tal como registadas em disco, que o escrupuloso Waters não tolera fugas ao guião. Nele couberam, em "The thin ice", imagens de anónimos que morreram em conflitos desde a Segunda Guerra Mundial - o pai de Waters, Eric, morto na invasão aliada à Itália, foi o primeiro.

Com a banda discreta em palco, de negro e sem focos de luz sobre si, progressivamente tapada pelo muro, o concerto foi uma experiência visual envolvente e montada sem mácula. Com o muro como ecrã gigantesco onde se concentravam todos os olhares, vimos um metro passar a alta velocidade, quando surgiu no ecrã Jean Charles de Menezes, o cidadão brasileiro morto pelo afã antiterrorismo da polícia britânica, assistimos a bombardeamentos com cruzes cristãs, estrelas de David, cifrões de dólar, logótipos de marcas de carro e petrolíferas. E vimos Roger Waters despedir-se da primeira parte do concerto com uma balada beatlesca. "Goodbye, cruel world", disse, quando se fechava sobre a sua face o último buraco aberto no muro.

Na segunda parte, cumprindo a intenção original de ter uma barreira isolando os músicos da plateia, ouviu-se a "Hey you" e a "Comfortably numb" que todos queriam ouvir. Vimos Roger Waters transformar-se em déspota de longa gabardina preta, rodeado de estandartes. Por fim, o julgamento e a redenção final. O muro a desmoronar-se e a pirotecnia a silenciar-se para que os músicos cantassem a velha canção folk de há 30 anos, "Outside the wall".

Em 1979, "The Wall" foi o pesadelo megalómano de um homem chamado Roger Waters. Hoje é o seu sonho. A vitória da sua vida.

Sugerir correcção
Comentar